Não é incomum vermos psicanalistas “torcendo o nariz” para religiões e buscas espirituais. É inegável que muitos psicanalistas famosos publicaram extensos trabalhos apontando as falácias da religião quando o assunto é tratar do sofrimento humano. O próprio Freud teceu críticas às religiões, principalmente às de base judaico-cristã. Em diversos trabalhos, ele coloca Deus como uma figura mítica, paterna, dominante e protetora, que vem preencher uma necessidade infantil básica de proteção e que cumpre uma função de facilitadora do funcionamento do pacto social, ao estabelecer a proibição e, principalmente, possibilitar sua aplicabilidade (capacidade de punir).
Ele coloca a religião como uma necessidade de povos primitivos para reprimir os impulsos selvagens e destrutivos, associada a uma figura protetora e provedora, que premia aqueles que “o temem” e respeitam suas regras. Entretanto, para Freud, em uma civilização que já tenha atingido uma consciência social mais evoluída, pautada pela razão e ética, como propunham os Iluministas, tal figura não é necessária.
Em Totem e Tabu (1913), Freud apresenta uma metáfora de uma sociedade governada por um “pai primevo” que tudo podia e que tinha todas as mulheres. Os outros homens nada podiam e nada lhes era permitido. As mulheres eram todas objetos do pai primevo. Insatisfeitos com a situação, os homens (filhos do pai primevo) se reúnem, matam e devoram o pai. Para garantir que ninguém tente assumir seu lugar, eles constroem um totem, símbolo de poder. O totem preenche um lugar vazio e também serve de aviso aos que se aventurarem ao poder.
Neste contexto (ou local vazio) surge um pai onipotente e onisciente que, apesar de poder, não resguarda para si todos os prazeres. Muito pelo contrário, ele permite que, dentro de determinados limites, cada pessoa desfrute seu “quinhão de paraíso”. Voltando assim a uma ideia de ordem que possibilita o convívio social.
Em O Futuro de uma Ilusão (1927), Freud volta ao assunto e coloca claramente que nenhuma religião sobrevive a uma isenta e desapegada elaboração racional, como propunham os Iluministas. Ou seja, Freud reconhece uma função social para a religião, em povos desprovidos de razão, que permite, ao mesmo tempo, espaço para atender a necessidade infantil de amparo e que garanta o funcionamento do pacto social.
Jacques Lacan, que expandiu os conceitos freudianos, dá um passo a mais no entendimento do funcionamento do aparelho psíquico e da nossa relação com a religião. Segundo ele, a religião é invencível, pois ela pode dar algum sentido a praticamente qualquer coisa, até mesmo à morte, o maior de todos os desamparos da humanidade.
Sem entrar nos detalhes da teoria lacaniana, que não é nosso objetivo aqui, Lacan estabelece paralelos de Deus e do significante “nome-do-pai”, que é fundamental na formação do Eu (Je) e que estabelece os limites para o sujeito. É o “não”, o limite, o impossível.
Assim, à primeira vista, nos parece que a psicanálise se opõe ao budismo, como religião ou prática espiritual. Mas será isso uma verdade? Vamos analisar um pouco mais a fundo.
O primeiro passo é definir o que é uma religião. Segundo o dicionário Oxford, religião é:
“crença na existência de um poder ou princípio superior, sobrenatural, do qual depende o destino do ser humano e ao qual se deve respeito e obediência”.
Se adotarmos essa definição, o Zen Budismo não é uma religião, pois ele não tem um “poder superior, sobrenatural, do qual depende o destino do ser humano”. Esse é um ponto importante no Zen. Muito pelo contrário, o Zen nos convida a assumirmos responsabilidade perante nossos atos e nos leva a desenvolver um sentimento de “responsabilidade para com todos os seres”. Joko Beck, inúmeras vezes, diz que temos que ver que nossa vida é como é. Portanto, Zen não é classificado nesse conceito de religião.
É bem verdade que algumas tradições budistas aceitam entes “incorpóreos” que podem influenciar nossas vidas. Até mesmo no Zen (principalmente o devocional japonês), que se mistura com a cultura japonesa e com o xintoísmo, vemos cerimônias e comemorações onde os fiéis solicitam bênçãos e favores. Entretanto, Mestre Dogen não trata disso; aliás, o foco dele é no zazen e na filosofia nagarjuniana, quem sabe tema para próximos ensaios.
A Wikipedia já traz uma definição mais abrangente de religião:
“Religião (do latim religio, -onis) é um conjunto de sistemas culturais e de crenças, além de visões de mundo, que estabelece os símbolos que relacionam a humanidade com a espiritualidade e seus próprios valores morais.”
Se adotamos uma definição mais ampla de religião, preterindo o conceito de divindade, então, sem dúvida, o Zen Budismo é uma religião. Ele é um elaborado conjunto de sistemas culturais e de crenças (as Quatro Nobres Verdades e o Caminho Óctuplo) que estabelecem a relação da humanidade com a espiritualidade e com o pacto social.
Nessa concepção mais ampla de religião, onde não há um ser dotado de poder e onisciência, a crítica freudiana cai por terra, pois não há uma figura paterna que acolha os “seres sofredores”. Nesse caso, temos, nós mesmos, que dar conta do nosso sofrimento e, quem sabe, dos outros também.
Segundo a psicanálise, essa necessidade de amparo enraizada no ser humano é resultado da nossa própria característica. Entre todos os mamíferos, o homem é o que nasce mais desamparado. Sem a atenção de um cuidador, estamos mortos em poucos dias. A crença em um ser protetor e provedor é acalentadora e facilita a relação com o desconhecido.
Entretanto, a prática proposta por Mestre Dogen não indica a sujeição a qualquer divindade ou a um ser que pode nos proteger. Muito pelo contrário, na minha opinião. A famosa frase de Mestre Dogen resume bem o assunto:
“A questão da vida e da morte é a mais importante de todas. Tudo é impermanente. O tempo passa rapidamente. Não desperdice sua vida em vão.”
A certeza da morte nos coloca de frente com o desamparo, quer gostemos disso ou não. Os mestres modernos, como por exemplo Kodo Sawaki, Shohaku Okumura, Pema Chodron, Philip Kapleau, Barry Magid e Charlotte Joko Beck, para citar os que mais me instigam, focam a prática na experiência e não na devoção. Podemos perguntar: qual experiência? Resposta difícil de ser dada, mas sem dúvida passaremos pelo desamparo e teremos que dar conta dele.
Antes de seguir, quero deixar claro que é, sem dúvida, lícito, e até saudável, abordar o Zen tanto pela devoção quanto pela prática. Muitos criticam os ensinamentos budistas como não unívocos, o que, em primeira análise, pode parecer correto. Entretanto, Buda era um professor e sabia dosar os ensinamentos conforme a audiência. Quando ele ensinava para pessoas simples, ele focava seus ensinamentos na ética, o que podia ser entendido pelo ouvinte. Quando ensinava para monges, ele usava outras ferramentas, muito além da ética e até da própria metafísica. Nesses ensinamentos, Buda tocava em uma realidade que suplantava as palavras e que apenas podia ser experienciada, como também propunham Nagarjuna e Mestre Dogen.
O curioso é que, por outros caminhos, Lacan encontra algo muito uníssono a esses ensinamentos. Para Lacan, existem três campos em nosso sistema psicológico: o Simbólico, nossa capacidade de representar a realidade a partir de símbolos ou linguagem; o Imaginário, a história que construímos a partir desses símbolos; e o Real, algo que fica além da simbolização.
No Zen, o registro do Real está sempre presente nas falas enigmáticas dos mestres e nos koans. O Zen, desde Bodhidharma, valoriza o Real e empurra, literalmente, o praticante a se deparar com ele e com a impossibilidade de significá-lo. Na minha opinião, a proposta de um Real além das palavras é a principal semelhança entre os dois. Infelizmente, não temos muito o que dizer desse campo do Real. Qualquer tentativa, quer seja pelo lado do Zen, quer da psicanálise, nos leva a enfrentar a impossibilidade ou o vazio (vacuidade).
A principal diferença, na minha opinião, é a forma de lidar com a impossibilidade humana. A ferramenta psicanalítica é a fala. Já a Zen é o silêncio. Serão dois caminhos que podem ser trilhados conjuntamente? Eu acho que sim, até porque eles levam a um conhecimento sobre si que está além das palavras.
Por último, vou mencionar o ponto que me parece mais polêmico: o desejo. A princípio, o budismo parece culpar o desejo pelo nosso sofrimento. Algumas escolas colocam esse fato abertamente e não é raro vermos textos e “ensinamentos” que apontam para o desejo como a raiz do sofrimento e como solução para seu extermínio.
Já na psicanálise, temos o inverso: o desejo é a causa do nosso sintoma, mas é também a sua saída. Só quem consegue lidar com a impossibilidade do seu desejo consegue se haver com seu sintoma.
Assim, essas posições podem também parecer conflitantes. Entretanto, na minha experiência, elas não são. O problema não reside no desejo, mas no apego. Coisas muito diferentes. O desejo é inerente ao ser humano e o Budismo não o recrimina. A prova está no próprio voto do Bodhisattva, enraizado no sublime desejo de salvar todos os seres. Isso é sofrimento?
Já o apego é a negação da impossibilidade. Como vimos, nem o “pai da horda” pode tudo. Como Joko Beck nos ensina: a vida tal qual ela é: o único mestre.
Assim, para mim, Zen e psicanálise não só tratam de assuntos correlatos, mas podem e devem ser tratados conjuntamente.
Por Lauro Ro-tsu, Ordinary Mind Zendô