Freud:  Impermanência,  Zen e Transitoriedade

 

Aishi-san me ligou há algumas semanas, perguntando se eu poderia escrever um texto para a revista Budismo Hoje, falando um pouco sobre o Zen e a psicanálise, tema que me movimenta muito. Sem dúvida, recebi o convite com muita alegria e responsabilidade, pois este é um tema que pode ser denso e, digamos, um pouco desinteressante.

Iniciei meu artigo falando sobre a questão da religião na psicanálise, um assunto fundamental e que, infelizmente, tem poucos trabalhos publicados. Entretanto, eu não estava muito satisfeito com o resultado e achava que um primeiro artigo sobre o assunto deveria ser diferente.

Uma noite, discutindo assuntos correlatos na nossa associação de psicanalistas de Belo Horizonte, me veio à lembrança um texto de Freud, impossível de ser recomendado em demasia, chamado “Sobre a Transitoriedade” (1916). Ele pode ser encontrado no seguinte link: Clique aqui.

O texto é curto e relata um passeio que ele fez em “uma rica paisagem num dia de verão, na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem, mas já famoso”. No relato, o amigo poeta se dizia perturbado pelo fato de que aquela paisagem linda seria extinta pelo inverno e algo exuberante seria destruído pelo tempo.

Freud argumenta que a vida é transitória, ou impermanente, como dizemos no Zen, e que tudo de belo e nobre, quer seja a criação do homem ou da natureza, um dia desaparecerá. A constatação desta realidade, segundo ele, pode levar a duas “diferentes tendências na psique”. Uma, como a do amigo poeta, é dolorosa com a realidade da impermanência da vida.

A outra, oposta, busca a valorização das coisas pela sua inerente impermanência: “valor de transitoriedade é o valor de raridade no tempo”! “A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade”.

No consultório vejo o tempo todo pessoas sofrendo com a impermanência, até mesmo em momentos de muita satisfação. Percebo que há algo em nosso aparelho psíquico que busca sempre negar a impermanência, rejeitar a finitude. Mestre Dogen nos lembra que a maior de todas as impermanências é a própria vida: “A questão da vida e da morte é a mais importante de todas. O tempo passa rapidamente. Não desperdice sua vida em vão”.

Freud tenta argumentar com seus amigos que é a própria transitoriedade que atribui valor ao momento presente. Ele diz: “é incompreensível, afirmei, que a ideia da transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que ele nos proporciona. Quanto à beleza da natureza, ela sempre volta depois que é destruída pelo inverno, esse retorno pode ser considerado eterno, em relação ao nosso tempo de vida. Vemos desaparecer a beleza do rosto e do corpo humanos no curso de nossa vida, mas essa brevidade lhes acrescenta mais um encanto”.

Podemos facilmente ver inúmeras semelhanças dessas afirmações tecidas por Freud com os ensinamentos dos grandes mestres Zen: o valor do momento presente é inestimável, exatamente pela sua fugacidade. Quando estamos admirando um pôr-do-sol, apenas admiramos. Quando lavamos o arroz, apenas lavamos o arroz. O momento presente não tem tamanho, não tem definição, não tem começo, meio ou fim. Ele apenas está e não está.

Freud continua seu relato dizendo que tenta explicar aos amigos seu ponto de vista: o valor do momento presente aumenta diante da impermanência. Mas eles não parecem entender. Ele se pergunta, então, por quê? Segundo sua lógica, a resposta está ligada ao luto. 

Segundo ele, “imaginar que essa beleza é transitória deu àqueles seres sensíveis um gosto antecipado do luto pela sua ruína, e como a psique recua instintivamente diante de tudo que é doloroso, eles sentiram seu gozo da beleza prejudicado pelo pensamento de sua transitoriedade”.

Na teoria psicanalítica, o luto é algo complicado e que, inclusive, pode estar relacionado à melancolia. É a dificuldade de se retomar um investimento (de energia psíquica) feito em algo, ou alguém, que se foi. Entretanto, essa discussão está além do meu objetivo neste breve texto.

Segundo os ensinamentos budistas, podemos relacionar o luto a um apego, um desejo desesperado para que as coisas sejam constantes. Uma negação da impermanência e uma reação furiosa contra a finitude da vida. Ou seja, como Mestre Dogen disse, a questão mais importante que podemos levantar. De onde vem esta reação? Onde está fundado esse desejo pela permanência? Afinal, como disse o comediante: “a vida tem uma taxa de mortalidade de 100%”. Entretanto, não conseguimos lidar com essa realidade.

Independentemente de sofrermos ou não com essa impermanência, tanto do ponto de vista do Zen quanto da psicanálise, o importante é viver o que quer que estejamos vivendo por completo e de forma presente. Negar ou esconder o sentimento só o torna mais longo e doloroso. Por incrível que pareça, a melhor forma de lidar com o luto é vivendo o luto. Pois ele também é impermanente. Se não nos apegarmos a ele, ele naturalmente passa, acaba.

Chegamos agora ao ponto crucial deste pequeno texto: o apego. Ele é tanto a raiz do luto quanto o vilão que não nos deixa usufruir o momento presente. É normal desejarmos que os bons momentos sejam eternos e que os momentos difíceis sejam passageiros. Somos humanos, afinal, nem a psicanálise nem o Zen negam nossa humanidade. Mas desejo não é apego. No apego, nos agarramos a uma ideia de posse, controle e domínio. Quando isso acontece, perdemos imediatamente aquilo que desejamos.

Como nos aponta Freud, a riqueza dos momentos está exatamente na sua singela e temporária existência. Aceitar a impermanência não é resignação; é libertação para viver o aqui e agora.

Freud continua seu texto falando da Primeira Grande Guerra, que aconteceu um ano após esse encontro, afirmando que ela “revelou a fragilidade de tantas outras coisas que acreditávamos sólidas”. Ou seja, a vida é frágil, tudo é frágil, este momento é frágil. Entretanto, ele pergunta se o fugaz, o que foi perdido, o que não existe mais, perdeu seu valor. Uma flor que dura apenas uma noite tem menos beleza que outras devido à fugacidade de sua existência?

No final do texto, Freud nos avisa que o precioso não tem menos valor por ser frágil e sem resistência. “Tendo renunciado a [desapegado de] tudo que perdeu, ele terá consumido também a si mesmo [o luto], e nossa libido estará novamente livre – se ainda somos jovens e vigorosos – para substituir os objetos perdidos por outros novos, possivelmente tão ou mais preciosos que aqueles”.

Então, será que a psicanálise é assim tão distante do Zen? Será que o texto do Freud não poderia ter sido escrito por um moderno Mestre Zen?

 

Por Lauro Rō-Tsū, Ordinary Mind Zendo 

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