A prática do cozinheiro zen, ou Tenzo, é uma das mais veneráveis e respeitadas dentro do templo zen, imbuída de profunda espiritualidade e significado histórico. Essa função transcende a simples preparação de alimentos, sendo considerada uma prática espiritual integral que reflete a essência dos ensinamentos zen. Dogen Zenji, o fundador da escola Soto Zen no Japão, dedicou um capítulo inteiro do seu “Shobogenzo” ao Tenzo, intitulado “Tenzo Kyokun” (Instruções para o Cozinheiro). Neste texto, ele estabelece os princípios que guiam essa prática, destacando a importância da atenção plena, da devoção e da sabedoria em cada aspecto do ato de cozinhar.
Historicamente, a figura do Tenzo surge nos grandes mosteiros chineses da dinastia Tang, entre os séculos VII e X. Durante esse período, o zen budismo florescia e os mosteiros eram centros de intensa atividade espiritual e cotidiana. A posição de Tenzo era considerada uma das mais importantes dentro da comunidade monástica, pois cuidar da alimentação dos monges não era apenas uma questão de sustento físico, mas também de nutrição espiritual. Acreditava-se que a maneira como os alimentos eram preparados e servidos influenciava diretamente a prática meditativa e a harmonia do templo.
Dogen Zenji, ao viajar para a China no século XIII, trouxe de volta ao Japão esses princípios e práticas. Em seu retorno, ele fundou o mosteiro de Eiheiji e implementou o papel do Tenzo como parte fundamental da disciplina monástica. Segundo Dogen, a prática do Tenzo deve ser realizada com o mesmo zelo e atenção dedicados à meditação sentada (zazen). Ele enfatiza que o cozinheiro deve abordar cada tarefa, por mais mundana que pareça, com um espírito de gratidão e reverência, reconhecendo a interconexão de todos os seres.
A prática do Tenzo envolve um profundo senso de responsabilidade e atenção aos detalhes. Desde a seleção dos ingredientes até a preparação e a apresentação dos alimentos, cada passo deve ser realizado com plena consciência. Dogen instrui que o Tenzo deve “considerar as ervas e grãos como se fossem seus próprios olhos”. Este ensinamento ilustra a importância de tratar cada elemento com o máximo respeito e cuidado, percebendo a sacralidade inerente em todas as coisas.
O trabalho do Tenzo começa cedo, muitas vezes antes do amanhecer. Ele deve planejar as refeições, levando em conta as necessidades nutricionais dos monges e os recursos disponíveis. A preparação dos alimentos é realizada em silêncio, promovendo um ambiente de concentração e meditação. A cozinha do templo, conhecida como daidokoro, é um espaço sagrado onde o Tenzo pratica a arte de transformar simples ingredientes em uma refeição que nutre tanto o corpo quanto o espírito.
A prática do Tenzo é também uma expressão da interdependência e da impermanência, conceitos centrais no budismo. O Tenzo deve ser flexível e adaptar-se às circunstâncias, como a disponibilidade dos ingredientes e as estações do ano. Esta adaptabilidade reflete a natureza impermanente da vida e a necessidade de viver em harmonia com a mudança constante. Através dessa prática, o Tenzo aprende a ver a vacuidade na forma, reconhecendo que cada ato de cozinhar é uma manifestação temporária da totalidade da existência.
A ética do Tenzo é outro aspecto crucial dessa prática. O cozinheiro deve agir com humildade e generosidade, colocando o bem-estar da comunidade acima de seus próprios desejos. A preparação dos alimentos é uma oferta, uma prática de dana (generosidade), onde o Tenzo expressa compaixão e amor por todos os seres. Esta abordagem reflete a interconexão entre a prática individual e o bem-estar coletivo, um princípio fundamental no zen.
A função do Tenzo, embora pareça simples, é uma prática intensa de mindfulness e presença plena. Cada ação, desde lavar o arroz até cortar os legumes, é uma oportunidade de prática espiritual. O Tenzo deve estar completamente presente no momento, livre de distrações e pensamentos dispersos. Esta prática de atenção plena não só aprimora a qualidade dos alimentos preparados, mas também aprofunda a consciência do Tenzo sobre a interconexão de todos os aspectos da vida.
Em última análise, a prática do Tenzo é uma metáfora viva para a prática zen como um todo. Assim como o Tenzo transforma ingredientes comuns em uma refeição que sustenta a vida, a prática zen transforma a vida cotidiana em um caminho para a iluminação. Dogen Zenji nos lembra que “não há diferença entre a prática e a iluminação; cada ato da prática contém a iluminação em si”. A prática do Tenzo, então, não é meramente uma função prática dentro do templo, mas uma expressão do próprio coração do zen.
Este profundo respeito e dedicação ao ofício do Tenzo exemplificam a essência do zen: a realização da verdade última na vida cotidiana. Através da prática meticulosa e consciente, o Tenzo encarna a sabedoria do zen, demonstrando que cada ação, por mais trivial que pareça, é uma oportunidade de despertar para a verdadeira natureza da realidade. Assim, a cozinha do templo se torna um dojo, um campo de prática onde a iluminação pode ser alcançada através da simplicidade e do serviço aos outros.
Por Aishi Fernando, DaissenJi, Soto Zen