Objetivo sem objetivo

 

Estava saindo do meu treino de natação e um companheiro de piscina me perguntou:

 

– Como foi o treino hoje?

– Bom. Respondi.

– Está nadando quantos metros?

– Não sei, não marco.

Sua expressão era de quem estranhava minha resposta e continuou;

– Mas seu tempo está diminuindo?

– Não sei, não marco o tempo também.

– Mas tu não contas as chegadas? 

– Não, quando começo a cansar sei que está terminando.

– Mas é bom marcar o tempo, as chegadas ou os metros. Para saber se está evoluindo.

– Não estou evoluindo, não estou indo para lugar nenhum. Estou apenas nadando.

– Mas como tu vais saber se está melhorando seu cardiovascular? Sua resistência? Sua performance?

– Não saberei, mas isso não importa, apenas nado.

-Mas então para que tu nadas?

– Para nada, apenas nado. Nado porque gosto de nadar.

 

Claro que eu poderia ter dito a ele que sentia se minha resistência estava melhorando no meu dia a dia, mas não iria adiantar, não era esta a resposta que ele queria ouvir. Ele queria saber de índices, tempos e números que pudesse comparar com os dele ou comprovar minha evolução. 

Esta conversa me lembrou uma entrevista de um repórter americano com a esposa de D.T. Suzuki sobre o Cha Dô². Ela estava lhe oferecendo uma cerimônia como forma de apresentar a cultura japonesa e o Zen. A cada movimento dela o repórter perguntava “Mas para que isso?” ou “Para que serve este movimento?”. Em determinado momento ela para a cerimônia e diz “Por favor, apenas aprecie o momento. Não há objetivos.” E como ela notou uma certa desconfiança em sua face ela continuou “Objetivo sem objetivo.” 

Praticamente todas as sociedades do mundo foram construídas com base em resultados, graus de evolução, performance, objetivos e metas. Toda nossa vida, desde o jardim de infância, está sob a métrica de graduações. É preciso tirar boas notas e fazer bons trabalhos para nos colocarmos bem na classificação escolar e passar para a próxima fase. Para conseguir bons estágios e bons empregos precisamos ser os primeiros, os melhores, os mais inteligentes. Sempre há um “mais” ou um “melhor” para corrermos atrás.

Fomos doutrinados a fazer algo apenas porque isso pode levar a um objetivo, ao cumprimento de uma meta. Se realizamos um trabalho que não nos levará a uma evolução ou não nos levará a alcançar graus de desenvolvimento, estamos perdendo tempo. É um trabalho inútil que não serve para nada. Levamos tempo para entender – se é que entendemos – que não é o fim que interessa. É o caminho, é a forma como caminhamos. É como nos comportamos, porque não existe um final, não existe uma fita a ser rompida, não existe uma linha de chegada. Não há um pódio, a Vida é só continuidade. Não estamos indo a lugar algum porque não viemos de nenhum lugar e se a Vida é só continuidade e vida e morte não existem, o que verdadeiramente tem valor é como passamos pela Vida, são as marcas que criamos, as pessoas que influenciamos e que, óbvio, nos influenciam também. 

Nossa vida foi moldada com base em resultados, de certa forma, dentro de um contexto corporativo e empresarial, isto até pode fazer algum sentido; mas para por aí. O valor do que fazemos não pode estar no fim, se for desta maneira deixamos de apreciar o momento para colocar nossa mente no futuro, em algo que ainda é nuvem. Gosto de pensar o tempo, este tempo que podemos medir claro, como os estados da água. O passado é gelo, não pode ser mudado. O futuro é gasoso, algo que não pode ser definido muito bem, algo nebuloso e incerto. O presente é líquido, onde tudo acontece, onde se pode moldar e mudar a realidade, o presente é impermanente, está em constante transformação. Frequentemente nos encontramos com a mente focada no incerto, no nebuloso, estamos tão preocupadas com os resultados que não aproveitamos o processo. O processo, o caminho, é o que há de mais precioso e o único com poder de nos transformar. 

O Zen não é diferente, se mantemos o objetivo sem objetivo e sem foco no resultado, nossa mente permanece no momento presente e se estamos vivendo o presente, não há lugar para ansiedade. Muitas vezes estamos tão obcecados com o despertar que deixamos de observar as pequenas transformações que vão ocorrendo na nossa maneira de ver o mundo, de interpretar a realidade e de nos relacionarmos com as pessoas, com os outros seres e com os acontecimentos. É como aquele grupo de pessoas que faz uma trilha até uma cachoeira e fica pensando apenas na cachoeira, se distrai em conversas, risadas e histórias só imaginando o momento de entrar na água e como será maravilhoso poder refrescar seus corpos; distraídos com imagens dos prazeres da cachoeira no futuro deixam de perceber o mundo de cores, flores, árvores, pequenos animais entre as folhas, pássaros e aromas do caminho. O caminho é pura contemplação e presença, o objetivo está no futuro e é, portanto, nebuloso. 

Precisamos abrir mão dos resultados para nos dedicarmos ao que existe de fato, a via. Uma vez participei de uma aula com um mestre de shôdô³ e ele dizia “Pratique a postura, sente-se confortavelmente, segure o pincel e realize os traços e acima de tudo abra mão do resultado, abra mão da estética, se o kanji irá ficar bonito ou não, abra mão do julgamento das pessoas, abra mão do certo e do errado. Apenas fique presente e divirta-se no caminho. Sorria. Se você não estiver se divertindo e sorrindo, largue o pincel”. 

Creio que este seja o supremo desapego, apenas sentarmos de frente para a parede e não nos preocuparmos com o despertar, apenas sentar e viver o momento presente e, talvez, com um único pensamento admissível “Onde está minha mente agora. Se eu morrer em zazen, como está minha mente?”. 

 

Texto de Monge Chudo. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Notas:

1-Na natação, uma forma de medir a distância que nadamos é contar o número de chegadas na borda;

2-Caminho do chá, ou cerimônia do chá, muito influenciado pelo zen;

3-Caminho da caligrafia japonesa, igualmente um caminho de contemplação pelo zen

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