Assim que nascemos, algumas caixas nascem junto conosco. Os paradigmas emergem junto do momento em que o nosso cordão umbilical é cortado, conhecemos o mundo. Quais cores eu posso usar, qual será o meu comportamento, meu jeito de perceber o mundo e as pessoas? Não há preocupação quando tudo lhe é explicado de acordo com seu gênero e classe social. De forma natural, e diria que bem sutil, somos convidados a nos encolher em muitas caixas para caber nesses espaços que foram destinados apenas para nós.
A partir do momento em que crescemos e nos tornamos adultos funcionais, é sempre esperado que seguimos também um caminho, e o roteiro normalmente é construir autonomia até sairmos das casas dos nossos pais, termos o nosso próprio espaço e viver a vida que sempre sonhamos. Mas, o roteiro simplesmente não funciona dessa forma, começamos a escalar montanhas de sentimentos confusos, e repentinamente nos deparamos com a necessidade de passar por mares repletos de frustrações, vendo de forma nítida as ondas se quebrarem sobre a nossa cabeça. Tudo passa e finalmente encontramos o nosso trabalho perfeito e o nosso amor, temos a plena certeza de que será para a vida toda, estável assim como deve ser. E começamos a perceber que nada é tão estável como imaginamos. Será que a vida não dá certo para nós?
Somos absorvidos por uma realidade com tantas expectativas e buscas que nada parece o suficiente. Estamos sempre à espera de algo sobre os outros e sobre nós mesmos, e sempre a espreita que algo possa acontecer e fugir do nosso controle, temos medo. Deitamo-nos sobre sentimentos emaranhados, nos bagunçamos entre as teias e tecemos relações rasas com as pessoas, com os nossos pertences, conosco.
Como podemos viver com as sensações que nos paralisam se elas antecedem a nossa morte? Acredito que essas questões perpassam por toda mente inquieta de um ser humano. Para mim, chegou um pouco mais cedo, na adolescência.
Segui na busca de tentar compreender qual lugar eu pertencia, sempre muito curiosa e atenta aos estudos religiosos, eu buscava um lugar de acalento, e principalmente entender se havia um propósito divino e responder perguntas que hoje sei que não são mais importantes. Depois de anos tentando até desistir, encolhida em muitas caixas –Trabalho, estudo, casa – entendi que a vida é simplesmente o que ela é, a vida não é satisfatória. Quando eu comecei a me aprofundar sobre os ensinamentos do Zen, eu me sentava no chão sobre a junção de dois travesseiros dobrados no meio e um lençol enrolado, sorrindo pois não acreditava que conseguiria ficar parada por muito tempo. E depois, ainda no processo de compreender os ensinamentos, me sento agora em um Zafu, vestindo um Samue e na companhia do Sangha. E ainda hoje, depois de estudar os ensinamentos de Buddha, ainda me sinto “começando” a entender que a vida é sofrimento, não é algo que pessoas estão acostumadas a aceitar, e não é algo que o meu eu de algum tempo atrás, sentada naqueles travesseiros, acreditaria. Mas estava disposta a tentar.
Estamos sempre sendo arrastados pela resistência da vida, pelo amargor das dificuldades, pelo medo de sair do que já nos é familiar. Vivemos o passado, nos culpando de como poderíamos ser melhores. Inventamos o nosso futuro, sem prestar atenção na xícara de café que estamos tomando. Mas, honestamente, viver no passado para mim sempre foi nostálgico, um sentimento confortável de quem sente saudade, e pensando no futuro há uma sensação de controle, uma falsa sensação. Quando eu digo que ainda estou começando a entender que a vida é sofrimento, é por essas atitudes que ainda levo comigo.
Quando olhamos para esses cenários que já se foram ou que ainda não existem, estamos esquecendo do que está acontecendo no agora. Você esquece de ver como as coisas realmente são, e veja, não há nada além disso. Não há com o que se preocupar quando você está dentro da impermanência, não há com o que se preocupar em relação a fala de outras pessoas, e nem com o modo como elas levam suas vidas e principalmente, como elas enxergam você. Você consegue se enxergar? O que você vê?
Caminhando em um parque ao entardecer, me sentei em um banco para descansar, e a minha grande surpresa foi olhar para os meus sapatos. Vi ao lado deles pequenas formiguinhas carregando folhas, bem maiores do que elas. Naquele momento eu entendi que o que torna a nossa vida um milagre é simplesmente aquilo que não estamos conseguindo enxergar. Ao observar aqueles grandes seres senti uma alegria como nunca senti na vida, pude experimentar a compaixão. O que ganhamos quando nos libertamos das caixas que foram nos destinadas? Se fosse o seu último dia na terra, você se sentiria feliz e entenderia o milagre de observar esses seres vivendo? Experimente parar um pouco, sentir a sua respiração e perceber as coisas ao redor, tenho certeza de que o essencial se fará presente para você.
Texto de Isabela Santos. Praticante na comunidade zen budista Daissen Ji. Escola Soto Zen.
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