Mono-no-aware e as três marcas da existência

 

Você conhece este termo? Mono-no-aware (物の哀れ), “o pathos das coisas”, também traduzido por “uma empatia para com as coisas” ou ainda “uma sensibilidade sobre coisas efémeras” (Wikipédia, 2023), é um conceito japonês que muito tem a ver com a prática budista: é um sentimento, no sentido de que é uma experiência emocional vivenciada no corpo, da transitoriedade das coisas. Mas, como postulo neste texto, acredito que mono-no-aware joga luz sob todas as verdades expressadas nas três marcas da existência: aniccā, a transitoriedade de todas as coisas, dukkha, a insatisfatoriedade inerente à incapacidade de realizarmos plenamente nossos desejos, e anattā, a falta de um eu substancial. Se olharmos atentamente, acho que é possível dizer que quando uma está presente as outras também estão.

Este complexo sentimento é muitas vezes interpretado como tristeza ou melancolia. Todos nós em algum momento provavelmente o experimentamos: nos momentos finais de um luto, quando a enxurrada da perda já passou e restam apenas a lembrança e a saudade. Quando perdemos de repente algo ou alguém não muito importante para nós, mas importante o suficiente para deixar uma marca emocional. No fim de uma viagem de férias, quando estamos voltando para casa, olhando a estrada e refletindo sobre os momentos que já foram, ou até mesmo logo depois de conseguirmos atingir uma grande meta ou saciar um teimoso anseio, quando ficamos imersos naquele vazio momentâneo até acharmos um outro objeto para o nosso desejo.

Uma outra fonte inesgotável deste sentimento é a natureza, muitas vezes pegando os caminhantes desprevenidos em suas trilhas, tomados por algo que está ali no não-dito de toda aquela beleza. É assim porque mono-no-aware é algo intrínseco à nossa forma de nos relacionarmos com a vida. Os antigos gregos, ao falarem de pathos, mencionado anteriormente como uma das traduções possíveis do termo japonês, dizem que esta é a essência necessária para o ato filosófico: uma espécie de espanto (thaumázein) perante os fenômenos da realidade. Heidegger, filósofo alemão do século XX, vai além: “pathos remonta a páskhein, sofrer, aguentar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se convocar por” (Martins, 1999). Portanto, há algum grau de afetamento relacionado à experiência de mono-no-aware, o suficiente para que ela se registre indubitavelmente como uma expressão emocional, e não mera abstração intelectual, das verdades inerentes à nossa existência. 

Phatos, mais comumente no contemporâneo, está associado com a patologia: o estudo das doenças. Buddha foi certo em diagnosticar a doença inevitável do ser humano: sua própria entropia. Nos primeiros quatro “temas para reflexão” do sutra Upajjhatthana, ele diz: “Eu estou sujeito ao envelhecimento, não superei o envelhecimento. Eu estou sujeito à enfermidade, não superei a enfermidade. Eu estou sujeito à morte, não superei a morte. Eu me tornarei diferente, separado de tudo o que é querido e amado”. 

Na paleta de experiências da sensibilidade humana, sentimentos como este muitas vezes registram como profundamente incômodos. A alguém com uma sensibilidade mais aguçada dos fatos da impermanência e da insatisfatoriedade da vida, mono-no-aware, memento mori, ou seja lá qual conceito cultural os representam, podem se transformar em grave angústia e ansiedade. Outras vezes, esses sentimentos se dão às tentativas de sublimação, através da arte e da literatura, por exemplo. O filósofo Kierkegaard construiu sua efêmera vida, já que faleceu aos 42 anos, nas suas percepções e interpretações da impermanência e insatisfatoriedade, pertinentes até hoje para a filosofia. Ouso dizer, no entanto, que aprendemos um tanto mais sobre tudo isso com a aproximação do oriente nas últimas décadas. 

 

Ainda em outros momentos, quando as quatro lembranças são rememoradas, seja por ato consciente ou pela invasão de sua concretude no real, tirando-nos de supetão de nossas fantasias, mono-no-aware pode ser traduzido em cuidado. Um exercício é tentar lembrar de algum momento da nossa convivência com pessoas próximas e amadas após uma perda significativa para todos. De repente, tudo fica mais leve e menos importante. Por uma fração de segundo que for, fica escancarado que a única coisa que importa é o amor. De resto, tudo passa. Nesses intervalos até as pessoas mais ásperas tendem a amolecer-se. A origem do conceito japonês está fortemente associada a isto: a compreensão da impermanência permite o cuidado com aquilo que um dia não estará mais lá. A natureza, por exemplo. 

Por isso, quando somos fortuitos o suficiente para sentirmos mono-no-aware, talvez seja possível ultrapassarmos a barreira da simples tristeza melancólica, ou da ansiedade característica, como resposta à presença das três marcas da existência. Se alguma coisa, é um momento plenamente favorável à prática. É, talvez, uma questão de perspectiva. Mas novamente, não mera perspectiva racional, mas sim uma questão de percepção em seu sentido mais profundo. Essa percepção pode e deve ser praticada pelos budistas, como orientou Buddha através da prática de Maraṇasati, a contemplação da morte. Mas não necessariamente precisamos observar corpos em decomposição, como era tradicionalmente feito, para isto. Aniccā, dukkha e anattā estão em todo lugar.

Me lembro de um vídeo no Youtube, produzido lá para 2013, que fazia alusão às novas tecnologias em desenvolvimento que, um dia, produziriam um aumento significativo do tempo de vida do ser humano. Na apresentação, o autor especulava que isso culminaria em uma importante mudança de paradigma, onde a humanidade não mais se sujeitaria a concepções e preocupações com morte e doença, preocupações tais que são as causas das criações das mais diversas religiões, consideradas pelo autor um grande mal. Freud foi um dos primeiros a conceber imagem semelhante: a preocupação com a morte foi o que trouxe à vida toda a simbologia religiosa e espiritual, e, eventualmente, a ciência a substituiria. 

Não quero me sujeitar a debater este assunto neste texto. Mas acho um apontamento válido: Mesmo se vivêssemos infinitamente, os fenômenos à nossa volta não deixariam nem por um momento de morrer, apodrecer e mudar. Nós mesmos, graças a insubstancialidade inerente, nos transformaríamos de forma a sermos irreconhecíveis a nós mesmos de 100, 50 anos atrás. E o Samsara? O mundo da perambulação e a constante procura pela satisfação dos desejos? Certamente se manteria. As três marcas ainda se colocariam imperiosas. 

Por isso, postulo que elas não devem ser fonte apenas de pesados sentimentos, mesmo que frequentemente sejam. Acredito que se olhadas e contempladas, e aqui está o verdadeiro significado da contemplação, podem traduzir-se não apenas em arte e cuidado, mas também em uma fundamental liberdade, quando sentidas em toda sua significância. Que belo presente, então, quando podemos senti-las na pele. Não é por acaso que nas últimas décadas estudos sobre o bem estar das culturas que possuem no seu cerne uma observação cuidadosa da morte como fato cotidiano, analisam que essas pessoas tendem a ser mais contentes e sofrer menos do que nós, que temos atualmente uma cultura que luta tenaciosamente contra o envelhecimento e a morte. Basta apenas observar os nossos anúncios e produtos cosméticos mais populares. 

Por isso, nós, praticantes budistas, temos o desafio, o grande privilégio e a tarefa, de praticar o zazen. Zazen, meditação sentada, fazendo shikantaza: apenas sentar, também pode ser entendido, quem sabe, como uma postura de morte. Uma postura onde morremos para nós mesmos, onde deixamos as três marcas da existência consumir nossa carne: a impermanência, que fica aparente para nós, dukkha, a insatisfatoriedade, que quebra e destrói nossas ilusões e anseios autocentrados, e anatta, a insubstancialidade de um eu; o vazio constituinte que mostra para nós que, mesmo que ainda acreditemos que sim, não há um eu de substância individual. Realmente, uma morte. Mono-no-aware tornada prática. Talvez seja por isso que Dogen diz que zazen é deixar cair corpo e mente. 

Afinal, um dos motivos de se contemplar a impermanência, e a morte, é a constante lembrança que nós só temos realmente, verdadeiramente, um destino: a morte. Então, quem sabe, lembremos também de aproveitar a jornada.

 

Texto escrito por Matheus Anshin, da comunidade Daissen, Soto Zen e revisado por Monge Kômyô. 

 

Fonte:

 

Martins, 1999. O que é Pathos? https://doi.org/10.1590/1415-47141999004005

 

Imagens: Gravuras no estilo Ukiyo-e, respectivamente: Yoshiwara, de Utagawa Hiroshige, Courtesan and Skull de Tomioka Eisen e Skeleton Performing Zazen on Waves, de Maruyama Okyo.

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