Texto da série: “Memórias de um Casal de Peregrinos”
Este momento contém cada passo dado até aqui, cada ajuda recebida, cada ensinamento transmitido, todas as manhãs chuvosas e lentas, todas as noites frias ou mornas. Abraços, páginas de livros, ritmos, discussões, sabores, reconciliações. Interconexões.
Observando japoneses esperando, imóveis, o sinal de trânsito se abrir para que atravessem uma rua na qual nenhum carro pode ser avistado, detectamos migrações humanas, guerra, fome, alegria, prosperidade, decepções, arrependimentos, poesia, disciplina, chá, espadas, arroz, mar, primavera, verão, outono e inverno.
Observando a nós mesmos – em pé, diante da faixa de pedestres, copiando as atitudes dos que nos cercam para, o mais invisivelmente possível, sermos respeitosos com nossos anfitriões – percebemos, um a um, os minutos em zazen passados até aqui ao longo dos anos, os desencontros, os mal-entendidos, as descobertas e os reencontros.
Um olhar desatento pode deixar passar, mas em Tóquio, com toda sua multidão entrando e saindo de escritórios, restaurantes e shoppings, pegadas dos ancestrais do Dharma estão espalhadas por todo lado. Visitamos templos que pareciam abrir uma fenda no espaço e no tempo. Um outro mundo incrustrado entre prédios espelhados e vias movimentadas.
Quando fomos para outra cidade e atravessamos os portais de Sojiji, ouvimos a voz de Genshō Sensei nos conduzindo. Ali, naquela fração de segundo, estavam os dokusans, os conselhos, os silêncios compassivos, as falas bem-humoradas, o olhar, o gasshō a cada despedida.
Em torno do templo, um cemitério, uma escola, uma cidade, costureiras que criam kesas, koromos e kimonos. Dentro, monges que os vestem em meio a incensos e recitações.
Tantos esforços individuais e coletivos tornaram possível naquele momento existir Sojiji. Quantas vidas transformadas e quantas doadas para que o Dharma chegasse até nós.
O agora – que riqueza, que imensidão…
Aqui, no trem que nos leva à cidade de Okayama, terminamos de escrever este texto. Da janela, o cenário tem um borrado mais esverdeado. São os campos de arroz e os telhados de casas baixas que substituem os arranha-céus e a superpopulação. Daqui a pouco entraremos no monastério de Toshoji para iniciar o nosso treinamento. Levaremos conosco a sangha, nossos companheiros de prática, e nosso mestre.
Texto de
Monja Kakuji 覚慈, Monja na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Monge Muryo 無量, Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.