O estúdio Ghibli e a Atenção Plena

 

Você já viu as animações do Studio Ghibli? Dirigidos pelo grande animador e produtor japonês Hayao Miyazaki, são filmes de grande criatividade e sensibilidade, marcados profundamente por temas como a relação com a natureza, a infância, a importância das relações sociais e a impermanência das coisas.

A cultura japonesa, em suas muitas manifestações, é impregnada por séculos de interseção com o Budismo. Por isso, não é incomum vermos paralelos entre suas percepções. Neste artigo, vamos explorar uma das características mais destacadas das produções do estúdio Ghibli, revisitando um tema especial que já tratamos na nossa coluna, a noção japonesa de espaço, ou Ma 間, e tecer algumas considerações sobre o silêncio e a Atenção Plena no nosso cotidiano.

Para quem já viu algo do estúdio, uma das coisas que podem ser notadas com facilidade são as cenas onde nada extraordinário acontece. Onde há apenas o desenrolar de momentos de passagem, como quando acompanhamos a viagem de trem em “A Viagem de Chihiro”, os vários cenários de paisagens naturais e urbanas, e os registros do preparo de alimentos, que também são bem frequentes e surpreendem com sua riqueza de detalhes e a beleza da animação.

Nada de “extraordinário” acontece, sim, é possível dizer, mas essas cenas são especiais e, de uma forma ou de outra, conseguem, misteriosamente, encorpar os personagens e seu mundo de significado e complexidade. São momentos de pausa, onde quem assiste respira e contempla, muitas vezes junto com os próprios personagens. Hayao Miyazaki explica que essa característica de seus filmes é, de fato, muito intencional:

Temos uma palavra para isso em japonês. É chamada de ma. Vazio. Está lá intencionalmente. [bate palmas] O tempo entre minhas palmas é Ma  . Se você tem apenas ação contínua sem espaço para respirar, é apenas agitação, mas se você tira um momento, a tensão construída no filme pode crescer em uma dimensão mais ampla. Se você mantiver a tensão constante a 80 graus o tempo todo, você simplesmente fica insensível.”

“Ma  間” refere-se ao espaço vazio, intervalo ou pausa entre as coisas. Pode ser entendido como a ausência física ou temporal entre objetos, sons, palavras ou eventos. O conceito de “ma” enfatiza a importância do espaço negativo e do silêncio, valorizando a pausa tanto quanto a ação ou o som. Andreza Albuquerque escreveu um belo artigo sobre o conceito aqui no jornal, vale a pena lê-lo para entendê-lo em profundidade:

 Texto MA

Nos filmes da Ghibli, Ma é o que vai dar um gosto, um sabor, de extraordinariedade ao ordinário, e dotar os momentos onde a trama se desenrola de significância. A pausa é o que faz o momento seguinte tão excepcional.

Nossas vidas também são assim. O que Miyazaki diz sobre o efeito da pausa em seus filmes pode ser empregado em nossas vidas sem precisarmos tirar ou adaptar nada. Nós também precisamos de espaços para que a dimensão de nossa realidade e de nossa prática possam florescer. E esses momentos de decurso, de testemunho do momento presente, são preciosos.

No budismo, é possível nos atermos a esses momentos com a prática de um dos aspectos do caminho óctuplo, a atenção plena. Respiramos conscientemente e, ao conceber nossa respiração, testemunhamos o que está acontecendo em nós e no mundo, prestando atenção plenamente, completamente, com a mente compenetrada.

Através dessa nobre prática, está o desenrolar do caminho budista, e, também, a habilidade de conseguir perceber no cotidiano, no simples e no ordinário, o que há de extraordinário e especial. Nisto, os filmes da Ghibli são nossos professores. Nos ensinando que todos os momentos de nossas vidas podem ser tão belos quanto eles.  Através da prática da meditação e da atenção plena no nosso cotidiano, nós treinamos essa percepção.

Nos ater ao momento presente não somente nos permite ver a beleza dos momentos efêmeros da vida, mas, como Shakyamuni Buddha exorta no Anapanasati Sutta, “Os quatro fundamentos da atenção plena quando desenvolvidos e cultivados realizam os sete fatores da iluminação. Os sete fatores da iluminação quando desenvolvidos e cultivados realizam o verdadeiro conhecimento e a libertação”.

Abaixo, alguns recortes preciosos de nossos mestres para nos ajudar a penetrar neste tema:

Eu sempre ensino sobre o passar do tempo, a impermanência permanente a reinar sobre todas as coisas.

 

São belos os paradoxos da vida.

Dias de juventude, tardes de pôr do sol.

Sonhos e tristezas, aprendizagens e erros.

Sempre e sempre, uma roda-viva de situações na roda-viva de minhas palavras…

 

Hoje, apenas hoje, eu quero dizer:

A vida é bela, como uma brisa que se renova todos os dias.

 

A vida é bela, apesar do sofrimento; talvez até seja o Sofrer aquilo que nos ajuda a buscar o melhor de nós mesmos e do mundo.

 

Não desista. Confie, aprenda, encontre meios saudáveis de viver.

Observe bem o que diz, seja candido ao usar palavras, e jamais deixe de ver a beleza da existência nas coisas singelas.

Eis o grande ensinamento do Tempo.

A Esperança –

pousada na janela

ao fim da tarde.

Ao som do vento       

velho sino de bambu

a cantarolar.

Monge Kômyô Sensei

 

Hoje pela manhã enquanto fazia café pensava sobre isso, colocar o pó, colocar a água, colocar o café na cafeteira, fechar, pensava em como era fazer só e tão somente aquilo que se está fazendo, prestar total e plena atenção àquele momento. Naquele momento só existe o café a ser passado, sem problemas a serem resolvidos, nada de passado ou futuro. Este é um exercício que deve ser feito a todo o momento. Chama-se “exercício da plena atenção” e é mais fácil de ser praticado no Zazen (Meditação sentada zen budista), pois você imobiliza o corpo e tem apenas os sons à sua volta, então use-os para se manter no momento presente. É muito comum escutarmos praticantes falando de suas mentes que não param durante o Zazen, vivem em ilusões e viagens para passado e futuro, como dizemos no Zen – “é um macaco bêbado pulando de galho em galho” – e é deste vício que temos que escapar.”.

Monge Genshô Roshi

 

Meia-noite. Sem ondas,

sem vento, o barco vazio

está inundado de luar.

Dogen Zenji

 

Texto por Matheus Anshin. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Fontes:

https://medium.com/@nayeonpark/ma-the-best-moments-in-a-studio-ghibli-film-are-silent-27210e215b21

Registros variados de filmes da Ghibli.

 

 

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