O caso da franquia Avatar, de James Cameron
Os ensinamentos do Buda datam de mais de 20 séculos e nascem plenamente integrados à cultura e ao contexto histórico em que viveram o seu fundador e seus primeiros discípulos. E, ao longo dos séculos, conforme se espalhavam e enraizavam nos solos culturais dos diversos povos e civilizações do leste asiático, os ensinamentos ganhavam novos contornos e se desenvolviam.
Porém, apesar das mudanças, que ainda ocorrem e certamente continuarão ocorrendo ao longo da história, os ensinamentos básicos do Buda permanecem como pilares que sustentam as mudanças, confirmando ser algo que toca a experiência humana no mundo como um todo, apesar do local e da época.
Talvez por isso seja possível identificar elementos-chave dos ensinamentos budistas presentes nas mais variadas produções culturais humanas, inclusive no ocidente, como no cinema mais espetacular e feito para o entretenimento, ainda que não de maneira explícita. Me parece ser o caso dos filmes da franquia Avatar, concebida e dirigida pelo cineasta estadunidense James Cameron.
Até este momento, o diretor lançou dois filmes da citada franquia (Avatar, em 2009, e Avatar: o Caminho da Água, em 2022) e anunciou mais três. Ambos propõem uma experiência imersiva em um outro mundo, um satélite que orbita um planeta gigantesco no qual a vida pôde se desenvolver, chamado Pandora, para o qual os seres humanos decidem viajar a fim de explorar seus recursos naturais, uma vez que, na segunda metade do século XXII, período em que se passa a história, o planeta Terra está em situação caótica. Em Pandora existe uma grande diversidade de fauna e flora, inclusive um povo humanóide chamado “na’vi”, inteligente e desenvolvido culturalmente, que vive de maneira integrada à natureza e que deseja preservar seu meio de vida, bem como a sua própria existência.
No primeiro Avatar, somos apresentados a uma tecnologia que combina DNA humano e na’vi, permitindo a criação de clones desse povo e que podem ser controlados remotamente por humanos, por meio de uma ligação neural. O protagonista do filme, Jake Sully, um ex-soldado que ficou paraplégico, é levado para fazer parte de uma equipe de cientistas, substituindo seu irmão gêmeo que fora morto na Terra. Essa equipe deseja estudar e compreender os na’vi, buscando meios de evitar o conflito entre as duas espécies, como também convencer a indústria que financia as pesquisas a explorar Pandora de maneira sustentável, em cooperação com os nativos, o que não acontece, já que a indústria conta com um corpo paramilitar altamente armado e hostil ao povo local.
Durante sua primeira missão, Jake Sully, no corpo do avatar, se separa da equipe e acaba se perdendo em Pandora, sendo acolhido, após relutância, pelos na’vi habitantes da floresta. Estes nativos já conheciam a equipe de cientistas e tinham estudado numa escola criada por uma pesquisadora, Grace, onde os nativos puderam aprender inglês e os humanos, a língua deles, bem como estudar sua cultura. O povo local resolve ensinar a Jake os seus costumes e aprender com ele sobre o humanos.
Assim, acompanhando o protagonista, descobrimos as florestas de Pandora, sua fauna e os meios de vida dos na’vi, mergulhando naquele planeta. Vemos a trajetória do personagem desde o ponto de partida, quando ele é um completo ignorante de tudo sobre aquele mundo, porém muito curioso e respeitoso em relação ao que aprende, até o momento em que ele é integrado ao povo e se torna, literalmente, um deles, assumindo uma nova identidade e maneira de existir.
Creio que podemos compreender a trajetória de Jake Sully como uma espécie de espelho ou metáfora para a nossa trajetória enquanto praticantes budistas. No início de seu percurso, o personagem diz: “Uma vida termina e outra começa”. E eu diria que é exatamente essa a ideia que dá base ao nosso caminho no budismo e no zen-budismo. Desejamos deixar nossa antiga vida para trás e dar início a uma nova forma de viver, livres das nossas ilusões e capazes de compreender a existência de uma outra maneira.
Jake Sully, ao se conectar pela primeira vez com o seu avatar, experimenta, depois de muitos anos, o que é poder ficar de pé, caminhar e correr livremente, sentindo o solo com os pés, a força da gravidade e a possibilidade de vencê-la, correndo e saltando – não nos esqueçamos, ele tinha ficado paraplégico. Além disso, ele pode respirar a plenos pulmões o ar de Pandora (tóxico para humanos sem máscara) e começar a sentir aquele novo mundo como se pertencesse a ele também. Para ele, é um momento fantástico, quase místico.
Não é difícil imaginar que esta primeira experiência de Jake Sully se assemelhe às primeiras vivências de samadhi e, posteriormente, de kenshô dos praticantes iniciantes mas perseverantes no zazen quando estamos sentados sem nenhuma expectativa e, ainda que por um breve momento, nos assentamos plenamente no presente, experienciando com atenção total os sons, cheiros e texturas do aqui e agora. Trata-se de um momento curtíssimo que se esvai assim que pensamos “nossa, que incrível”, mas que é extremamente satisfatório no momento em que ocorre. Assim como Jake, nos damos conta que ainda temos muito a aprender para aprofundar nossa experiência, mas esse primeiro evento é marcante e nos estimula a querer continuar.
Na medida em que a narrativa do filme se desenrola, vemos o protagonista aprender, lenta e consistentemente, os costumes dos na’vi da floresta. Vemos seu processo de adaptação ao novo corpo, a exploração das novas possibilidades que ele lhe oferece, por meio da prática, da escuta e do exercício constante, sem julgamento. Nas palavras dele mesmo, depois de um tempo vivendo entre os na’vi: “Meus pés estão ficando calejados; consigo percorrer distâncias cada vez maiores. Só preciso confiar no meu corpo para saber o que fazer”.
Assim como nos diz sensei Genshô, devemos confiar na nossa prática. Eu diria calejar nossos joelhos para sentarmos e penetrarmos cada vez mais fundo em nós mesmos. Não julguemos se nosso zazen foi bom ou ruim, melhor ou pior; apenas sentemos e confiemos no nosso corpo, na nossa prática, nas instruções que recebemos. Jake Sully diz a uma das nativas, a certa altura, que está com o “copo completamente vazio”, ou seja, sua atitude é de receptividade total ao novo e aos ensinamentos dos mais experientes, atitude esta que é a mesma que nós, praticantes, devemos ter ao longo do nosso caminho no budismo. Devemos baixar nossa guarda, reconhecer nossa ignorância e aprender. Não apenas como estudiosos (caso dos cientistas apresentados no filme), mas como praticantes.
Aprendemos, junto com o protagonista, que os povos na’vi vivem em integração plena com todos os seres. Em Pandora, todos possuem adaptações anatômicas e neuroquímicas que lhes permitem conectar-se diretamente entre si. Isso possibilita uma integração entre as mentes dos na’vi e dos animais, permitindo que trabalhem em cooperação, bem como com toda vida vegetal do planeta, que também possui “terminais” aos quais os seres podem “plugar” e compartilhar memórias e emoções.
Esta conexão literalmente direta entre os seres e o mundo que é Pandora pode ser vista como uma metáfora para o ensinamento budista da interdependência, da originação dependente. Os personagens falam de uma “rede de energia que conecta todos os seres vivos. A energia é apenas emprestada, um dia temos que devolver”. Ou seja, um existe porque o outro existe. Tudo o que um é, o outro também é; tudo que existe aqui no meu corpo foi tomado deste planeta e será devolvido a ele, para que novas coisas e seres possam existir. Tomamos de empréstimo e entregamos de volta.
Existem em Pandora árvores chamadas pelos nativos de “Árvore das Vozes” e “Árvore das Almas”. Para eles, conectar-se com essas árvores, por meio de terminações nervosas e folhas e raízes especializadas, é um modo de se conectar com os ancestrais e ouvir suas vozes. É assim que eles percebem que todos permanecem vivos eternamente como parte de Eywa, nome da divindade deles, que representa a própria natureza e tudo que vive.
Não é difícil compreender esse fato como uma metáfora para o estado de conexão plena com o absoluto que buscamos com a nossa prática. Conectar-se com as árvores seria o equivalente ao ensinamento budista da percepção direta de nossa verdadeira natureza, da nossa inseparabilidade, da não dualidade da existência. O outro sou eu. Apenas parece que não enquanto vivemos como manifestações individualizadas. “A vida nos vive”, como nos ensina sensei Genshô. Somos todos a mesma vida. Somos todos o mesmo mundo, o mesmo universo.
Para Jake Sully, à medida que ele se aprofunda naquele mundo e naqueles costumes, Pandora e a vida como na’vi lhe parecem o real, a “verdadeira realidade”, enquanto que a vida como humano parece um sonho – ruim, eu diria – afinal, lembremos que ele vive entre os na’vi utilizando o corpo do avatar, e que ele necessita da tecnologia de conexão neural para permanecer entre os nativos. Vemos, como espectadores, claramente as mudanças de comportamento acontecendo junto com a mudança de percepção e de modo de estar no mundo. Mente e comportamento mudando ao mesmo tempo. Como se espera com a prática budista.
Porém, Jake ainda é um humano vivendo num corpo que não é o seu. Apesar de toda sua prática, de sua dedicação integral à Pandora e seus habitantes (no filme, acontecem graves conflitos e destruição, antes que os inimigos humanos possam ser sobrepujados pelos na’vi sob a liderança do protagonista), ele precisa vencer os últimos limites, atravessar a última barreira – semelhante ao Buda que foi até o fim para alcançar o pleno despertar e encontrar o nirvana. Assim, ao fim (e aqui vem um spoiler do filme), vencidas as grandes batalhas, o protagonista pode colher os frutos de sua dedicação plena: acontece a transferência da consciência de Jake de seu corpo humano para o corpo na’vi de seu avatar, possibilitada pela árvore das almas.
Na última cena, no último quadro do filme, Jake aparece abrindo os olhos após a transferência. Desta vez, ele é plenamente um na’vi. Uma nova vida se inicia. Ele verdadeiramente desperta. Que possamos fazer como Jake Sully: mergulhemos em nossa prática, retiremos os véus e abramos nossos olhos, despertando para nossa verdadeira natureza interdependente e conectada com o absoluto – a nossa Pandora.
Escrito por Uendel de Oliveira. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen