O Zen na China
A partir de Shakyamuni, a essência da iluminação de Buda foi transmitida, ao todo, através de 28 gerações de mestres Dhyana da Índia, até Bodhidharma, no século sexto da era cristã. Sidharta Gautama, na verdade, tornou‑se um herói que conquistou o mundo, mas não exatamente da maneira que seu pai planejara. Mais ou menos no ano 520, Bodhidharma cruzou o oceano Índico, indo para a China. Sua chegada às terras do “imperador amarelo” marcou o início do Chán e ele tornou‑se o primeiro patriarca chinês da tradição.
Embora diversas escolas do budismo tenham sido criadas na China, muito antes de Bodhidharma chegar, sua reputação de renomado mestre de Dhyana antecedeu‑o; por isso, o imperador chinês Wu‑ti (502‑540), que era um budista devoto, convidou Bodhidharma para visitar o palácio imperial, a fim de transmitir seus ensinamentos.
O imperador tinha patrocinado a construção de muitos mosteiros e templos budistas e sustentado diversos mestres de várias seitas budistas. Segundo sua maneira de entender os ensinamentos, achava que, em conseqüência de tudo o que fazia, deveria merecer um feliz e próspero reino, além de ter o privilégio de reencarnar no lugar que alguns budistas chamam de “Nação Puraʺ, onde, ao contrário da Terra, todas as condições de vida conduziriam à realização da iluminação.
O imperador estava encantado por ter a oportunidade de encontrar um mestre profundamente iluminado e ansioso para conhecer suas realizações espirituais. Conta-se que, ao encontrar Bodhidharma, o imperador perguntou:
Tenho construído muitos templos, copiado inúmeros sutras e ordenado muitos monges, desde que me tornei imperador. Portanto, pergunto‑lhe: Qual é o meu mérito?”
“Nenhum!ʺ, respondeu Bodhidharma.
O imperador insistiu: “Por que não tenho méritoʺ?
Bodhidharma replicou: “Fazer as coisas para obter mérito tem um motivo impuro e só revelará o fruto mesquinho do renascimentoʺ.
O imperador, um tanto aborrecido, então, perguntou: ʺQual é o princípio mais importante do budismo?”
Ao que Bodhidharma respondeu: “Um grande vazio. Nada sagrado.”
O Imperador, agora confuso e bastante indignado, inquiriu: “Quem é este que está diante de mimʺ? Bodhidharma falou: “Eu não sei.ʺ
Vendo que o imperador não entendeu, Bodhidharma cruzou o rio para Shaolin, onde ficou em meditação durante nove anos, voltado para a parede de uma gruta.
Wu‑ti, mais tarde, conversou com um de seus ministros budistas sobre o encontro que tivera com Bodhidharma. O ministro perguntou: “Vossa majestade imperial sabe quem é essa pessoaʺ? O imperador disse que não sabia. O ministro falou: ʺEle é o bodhisattva da compaixão, portador do selo do coração de Budaʺ. Cheio de arrependimento, o imperador quis chamar Bodhidharma de volta à corte, mas o ministro advertiu: ʺAinda que você o mandasse buscar, ele não viria. Nem mesmo se todos na China fossem pedir‑lheʺ. Ao mesmo tempo, Bodhidharma atraía um círculo de seguidores e, com o passar dos anos, confirmou Eka (o chinês Hui K’ʹo) como seu próprio sucessor do Dharma.
Os mestres de Dhyana rapidamente descobriram que os chineses tinham um sistema contemplativo próprio, segundo os ensinamentos de Lao‑tsu e de Ch’ʹung‑tsu (o qual se chama coletivamente de taoísmo). A maneira simples de viver em harmonia com a vida, associada ao taoísmo, está resumida no princípio ʺWu‑weiʺ, que significa ʺnão‑fazerʺ ou ʺnão‑esforçoʺ (no sentido de seguir as ilusões da mente). O texto clássico do taoísmo, o Tao Te Ching, começa assim:
O Tao que pode ser contado não é o Tao eterno.
O nome que pode ser especificado não é o nome eterno.
O que não tem nome é o eternamente real. Dar nomes é a origem de todas as coisas pessoais.
Livre do desejo, você compreende o mistério. Apanhado em desejo, só vê as manifestações.
Embora mistério e manifestações surjam da mesma fonte, essa fonte chama‑se escuridão.
Escuridão dentro da escuridão. A porta de todo o entendimento.
As similaridades com o budismo Dhyana eram marcantes e, mais tarde, o Chán foi impregnado pela influência do taoísmo que, assim, deu a Chán seu valor distinto. Veja, por exemplo, o Hsin Ming, escrito pelo terceiro patriarca, Sengstan (em japonês, Sosan), que assim começa:
O Grande caminho não é difícil para aqueles que não têm preferências.
Quando amor e ódio estão ausentes
Tudo se torna claro e indistinto.
Faça a menor distinção, entretanto,
E o céu e a terra serão infinitamente postos de lado.
Depois do quarto patriarca, Tao‑hsin, os mestres do Chán começaram a construir e fundar mosteiros para treinamento e, quando chegou a época do Quinto, Hung‑jen (601‑74), já havia mil monges estudando na mesma área.
Texto escrito pela equipe da coluna História e Sociedade
Fonte: O livro de ouro do zen – David Scott e Tony Doubleday; tradução de Maria Alda Xavier Leôncio – Rio de Janeiro – RJ: Ediouro, 4ª ed. 2001.