Nesta edição, o jornal Budismo Hoje conversa com o monge Mushin e Fusō san, integrantes da Comunidade Daissen que se mudaram para a Austrália e, de lá, mantém as práticas ativas junto à Comunidade Daissen.
Monge Mushin (Daniel) começou a praticar no Daissen Ji na sangha de Florianópolis em 2014. Em 2017 ocorreu o seu jukai, investidura leiga, quando recebeu o nome no Dharma de Angyō por monge Genshō sensei. Em 2022 ocorreu sua cerimônia de Shukke Tokudo, cerimônia de ordenação monástica Daissen, quando foi ordenado monge noviço por Genshô sensei, recebendo o nome de Mushin.
Na Daissen, atua como tutor no Centro de Estudos do Dharma (CED), instrutor de zazen nas práticas virtuais, é coeditor da coluna de Meditação na revista Budismo Hoje, coordenador da sangha Daissen Austrália e superintendente internacional da Daissen.
Na vida leiga, é licenciado em educação física pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atuou por muitos anos como professor em escolas públicas e em projetos sociais ligados ao skate.
Já Fusō san (Nathália) começou a praticar no Daissen Ji na sangha de Florianópolis em 2014. Em 2017 ocorreu o seu jukai, investidura leiga, quando recebeu o nome no Dharma de Fusō por monge Genshō sensei. Na Daissen, atua como tutora no Centro de Estudos do Dharma (CED), instrutora de zazen nas práticas virtuais e é editora responsável pela coluna de Meditação na revista Budismo Hoje.
É graduada em ciências sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestra em antropologia social pela mesma universidade. Especializada nas temáticas das populações afro-brasileiras, comunidades quilombolas e relações de gênero, atuou como consultora socioambiental e atualmente é estudante de doutorado em antropologia na The University of Queensland em Brisbane na Austrália.
Desde julho de 2022, monge Mushin e Fusô san moram na cidade de Brisbane, capital do estado de Queensland, costa leste da Austrália. A cidade é a terceira maior do país e está construída ao longo do rio Brisbane. Foi considerada a melhor cidade para se viver no mundo por alguns anos consecutivos e atualmente está na 10ª posição; isso porque a cidade, apesar de ser grande, ainda guarda um estilo de vida muito tranquilo como o das cidades menores, é muito segura e repleta de áreas verdes públicas por todas as partes. Além disso, está há cerca de 100 km da Gold Coast (ao sul), famosa por suas praias com ondas boas para o surf e a Sunshine Coast (ao norte), com belíssimas paisagens e natureza exuberante.
Budismo Hoje – Como é viver do outro lado do mundo e manter a conexão com a Comunidade Daissen?
Monge Mushin e Fusō San – É tudo ao contrário, literalmente, hahaha! Mas, agora falando sério, acreditamos que morar em Belo Horizonte e a pandemia foram excelentes treinos para o momento que estamos passando agora, vivendo na Austrália. Começamos a praticar quando morávamos em Florianópolis, em 2014. Tínhamos o privilégio de conviver com Genshô sensei todas as semanas, ouvi-lo falar sobre o Dharma e também com toda a linda sangha de Florianópolis. Depois de um tempo, a Sangha vira sua família.
Quando decidimos, em 2018, que nos mudaríamos para Belo Horizonte, uma das partes mais difíceis era, com certeza, ficar longe da sangha. Mushin san até questionava na época se devíamos mesmo nos mudar, porque sentíamos que encontrar a sangha e a prática era algo precioso demais em nossas vidas e não queríamos correr o risco de perder. Nessa altura, o zazen já fazia parte diária de nossas vidas, não havia dúvidas sobre se esse era nosso caminho. Mas vários motivos da vida nos levavam para BH naquele momento e fomos com o coração apertado.
Naquela época, a Daissen ainda não estava tão espalhada como agora e o Daissen Virtual existia, mas só localmente, não como agora. Então começamos a praticar com Mokugen roshi no Templo das Alterosas. Foram muitos aprendizados, mas nos sentíamos já conectados com Genshô sensei, já tínhamos o rakusu. Começamos a nos envolver mais nas atividades da Daissen que podíamos fazer à distância. Foi naquele ano que o CED (Centro de Estudos do Dharma) começou e fizemos parte como tutores e até hoje atuamos lá. Sempre que podíamos íamos a Florianópolis para o sesshin de Carnaval. Na pandemia tudo parou, mas a Daissen Virtual foi um presente para gente e imagino que para todo mundo. Em um momento tão estranho para o mundo todo, ter a oportunidade de sentar quase todos os dias com toda a sangha Daissen, voltar a escutar as palavras do sensei todas as semanas era uma maravilha!
Já não nos sentíamos longe e acho que talvez seja um pouco isso que a gente sinta morando e praticando aqui na Austrália. É uma distância geográfica enorme, mas, ao mesmo tempo, o que sentimos é que, para a força da sangha, a noção de tempo-espaço é bastante distinta. A sangha é muito forte e já estamos tão envolvidos em várias atividades da Daissen, na prática do zazen, na nossa escolha do Genshô sensei como mestre, que estar do outro lado do mundo não é uma questão; traz algumas dificuldades, com certeza, mas não impede de jeito nenhum a nossa prática. Além disso, Mushin san é responsável pelas práticas virtuais das segundas-feiras pela manhã no Brasil e um dia de prática para iniciantes no mês. Ter esses compromissos com a sangha ajudam muito a manter a conexão com a Daissen.
A prática Zen ajuda-os a se adaptar ao país? Ou, mais que isso, tem função agregadora (une-os a outras pessoas interessadas no Zen)?
A gente acha que praticar zazen ajuda na adaptação a qualquer mudança, sejam elas as mudanças simples do dia a dia, as mudanças que a vida nos coloca ou as mudanças que a gente mesmo escolhe. Nós escolhemos há muitos anos que queríamos nos mudar para a Austrália. Esse era um plano antigo e que foi sendo trabalhado pouco a pouco, até que tudo parecia certo e estávamos há dois dias de nos mudar para cá, quando a pandemia da Covid-19 foi anunciada. E aí foi uma dessas mudanças que a vida nos coloca e a prática nos ajudou muito a ficar bem naquele momento, aceitar o que estava acontecendo, esperar a hora certa de poder viajar.
Dois anos e meio depois, viemos finalmente e mudar é sempre gostoso, mas também é bem difícil. A primeira dificuldade é o jetlag quando a gente chega. E aí começa toda a vida nova: abre conta em banco, tenta entender o sotaque australiano e a burocracia daqui que é bem chatinha, começar na universidade nova, buscar trabalho, casa, fazer novos amigos etc. Tem momentos que é difícil, mas seguimos com paciência e tudo vai se ajeitando. Chegamos no comecinho de julho e já estamos nos sentindo em casa, bem acolhidos na terra dos cangurus.
Sobre o Zen ser agregador na nossa vida aqui, achamos que pode ser mais um dos elementos. O primeiro tem sido o fato de sermos brasileiros; então, quando encontramos outros brasileiros, a afinidade logo aparece, mesmo que sejamos todos bem diferentes, o fato de estarmos do outro lado do mundo acaba nos unindo. Mas a gente sente que ser praticantes do Zen tem nos aproximado das pessoas que são mais parecidas com a gente.
Ainda no Brasil, quando estávamos procurando uma casa para morar quando chegássemos na Austrália, fizemos uma conversa com as pessoas da casa e nos apresentamos. Dentro disso, falamos que éramos praticantes zen budistas e sentimos que ficaram muito interessados. Uns dias depois disseram que tinham nos escolhido para ficar na casa. Quando chegamos ao quarto, que já estava decorado, parecia que tinha sido feito por nós. No banheiro havia uma frase de Thich Nhat Hanh impressa, na mesa uma estátua de Buda e vários livros budistas pela casa. Uma das moradoras era professora de yoga e todos estavam muito interessados em budismo e meditação. E desde então tem sido assim, quase sempre conhecemos pessoas que estão interessadas em meditar, no veganismo, em uma vida mais conectada e respeitosa com a natureza. Temos conhecido pessoas lindas que têm nos acolhido com muito carinho por aqui.
Como tem sido a rotina do casal desde a mudança?
Demorou um pouco para a gente conseguir criar uma rotina aqui. Acho que agora estamos conseguindo um pouco mais, mas ainda com alguns desafios. No começo o jetlag foi o mais difícil. São 13 horas a mais de diferença para o horário de Brasília e o organismo fica realmente perdido. Levamos em torno de duas semanas para que o corpo realmente começasse a entender a diferença e se adaptasse. Depois disso, estávamos nessa casa nova, na cidade nova, país novo, com muita curiosidade para descobrir as pessoas e lugares novos. Logo Mushin san começou um trabalho e os horários eram um pouco complicados. Mas ainda no primeiro mês tentamos retomar nossa prática de zazen diário. Trouxemos nossos zafus e zabuton bags, que ocuparam uma mala inteira, haha! Mas para nós era importante ter certeza de que poderíamos retomar a prática o quanto antes.
Então nossa rotina tem sido mais ou menos parecida com a do Brasil: acordamos cedo, fazemos zazen, exercícios físicos e depois vamos trabalhar. Os horários de trabalho de Mushin san ainda são um pouco confusos, alguns dias começa a trabalhar muito cedo, outros mais tarde e chega mais tarde em casa. Vamos tentando nos adaptar e garantir pelo menos um zazen por dia. Aos sábados vamos surfar nas praias do sul de Queensland, que estão bem próximas de nós. Seguimos envolvidos em atividades da Daissen, como CED, Budismo Hoje, Daissen Virtual… enfim, ainda nos adaptando, mas tentando viver da forma que acreditamos, com saúde, leveza, zazen e esportes.
A Daissen nunca esteve tão longe… a versão virtual ajuda-os na manutenção desta conexão?
Ajuda bastante, mas com a dificuldade dos horários já não estamos conseguindo participar tanto quanto participávamos quando estávamos no Brasil. Os horários da noite coincidem com o meio das nossas manhãs e, muitas vezes, estamos trabalhando ou estudando. E os da manhã tentamos fazer sempre que é possível. Porém, a diferença de fuso é realmente um complicador. Mas a internet é algo maravilhoso para quem está morando longe, é uma excelente ferramenta de comunicação e aproximação. Foi incrível que, durante nosso vôo do Brasil para Catar e depois de Catar para Austrália, nós tínhamos internet e podíamos atualizar nossas famílias de tudo. Há anos isso era impossível. Então a internet tem sido ótima nessa função de não fazer com que a gente sinta que está muito longe da sangha, das nossas famílias, do Brasil. A Daissen Virtual é um presente nas nossas vidas desde a pandemia.
A Austrália, proporcionalmente falando, é um país ocidental fortemente aberto ao budismo. Perceberam esta tendência?
A gente tem percebido que as pessoas aqui são muito abertas para práticas de meditação de forma geral. Não sabemos se é o bairro que estamos morando, que é mais alternativo, mas a gente conhece muita gente interessada em meditação. E no budismo, acreditamos que a questão da imigração também tenha a ver. Há muitos chineses morando aqui na Austrália e alguns são budistas. Em geral, tem muita gente de países como Tailândia, Índia, Malásia e Japão morando aqui na Austrália e, talvez, já tragam bastante desse interesse ou prática de budismo de seus países natais. Mas ainda precisamos entender melhor tudo isso.
Quais os planos para a prática aí na Austrália?
No começo de dezembro iniciamos um grupo da Daissen por aqui. Estamos oferecendo a prática todos os domingos pela manhã em uma academia de yoga e jiu-jitsu em West End, o bairro que moramos. O plano é seguir com essa sangha, ir fortalecendo, contornando os desafios de conexão da sangha daqui com a Daissen no Brasil e pouco a pouco ir pensando em zazenkai, retiros e, quem sabe um dia, um retiro com a presença do Genshô sensei em terras australianas. Estamos animados em começar a ter uma sangha aqui porque, mesmo praticando os dois juntos em casa, o caminho não é o mesmo sem a sangha. Não é à toa que é uma das três joias.
Há vários adeptos da Daissen (alunos do Sensei Genshō) espalhados por diferentes países. Que conselho vocês dariam, no sentido de incentivá-los a multiplicar o Dharma em suas cidades?
A gente acha que a questão é essa, não adianta só praticar sozinhos em casa. É muito importante essa rotina de prática em casa, sentar todos os dias, mas a sangha é parte fundamental do caminho. Então o conselho talvez fosse esse: embora seja difícil começar um grupo de prática, e morando fora do Brasil surgirão vários desafios, tentem encontrar um local onde possam praticar com outras pessoas. Praticar em sangha faz toda a diferença. Durante esses anos, uma coisa que temos aprendido é que o Zen e zazen não é só para a gente e, portanto, é importante nos empenhar para possibilitar que outras pessoas tenham contato com a prática, do mesmo jeito que a gente teve quando quis começar.
Do que mais sentem falta do Brasil e da proximidade física da Daissen?
Dos abraços! O povo australiano não é um povo com costume de se abraçar. São muito educados, simpáticos, mas não se abraçam. É impossível não se lembrar dos finais de sesshin da Daissen quando todos nos abraçamos, sorrimos, choramos, celebramos o ser-sangha. E sentimos muita falta dos sesshins presenciais, de participar presencialmente dos eventos da Daissen. Teve o Shin San Shiki, o Rohatsu Sesshin e não pudemos participar. Mas entendemos que essas são as consequências de estarmos longe geograficamente.
Qual a mensagem que vocês deixam para os integrantes da comunidade aqui no Brasil?
Estamos com saudades da preciosidade que temos aí no Brasil. Aproveitem bastante o fato de estarem aí, perto do Sensei, podendo ouvi-lo de perto, participar de seshins. São oportunidades muito maravilhosas! E no mais, estamos longe, porém perto e esperando a visita de todo mundo aqui na Daissen Austrália.
Muito obrigado por responder ao Budismo Hoje. Há algo mais que gostariam de acrescentar?
Acho que já falamos sobre isso ao longo das outras perguntas, mas talvez seja importante reforçar. A gente tem percebido que o fato de termos desenvolvido uma rotina de prática de zazen desde o começo e de estarmos envolvidos em várias atividades da Daissen, ajuda muito para que mesmo estando tão longe, com os horários tão trocados, a gente não se desligue do Zen, do zazen e da Daissen. Outra questão é que Mushin san foi ordenado monge noviço no sesshin de carnaval de 2022 e isso traz muitas responsabilidades, que estamos sentindo que auxiliam bastante para que sigamos em conexão com a Daissen. Então é isso, a gente acha que realmente faz muita diferença se envolver de verdade com a sangha, porque isso fortalece a prática. É só a nossa experiência, claro, mas é o que estamos sentindo daqui do outro lado do mundo. Gasshô!
Entrevista realizada por Juliana San e Sonielson Kidô San. Praticantes na Daissen Ji. Escola Soto Zen.