O Zen Que Se Faz Poesia e a Poesia Que Se Faz Zen

 

Não sei o que é conhecer-me
Não me vejo para dentro
Eu não acredito que eu exista por detrás de mim.

Alberto Caeiro

 

Fernando Pessoa, vestindo a máscara de Alberto Caieiro, nos mostra no poema acima o quanto o Dharma é universal. Poesias Zen, monges poetas, pintores do Dharma. Beber chá como se estivesse pintando um quadro, criar um arranjo de flores como que compondo uma sinfonia. Muitas vezes, a intuição de alguns artistas os levou a estudarem o Zen, assim como a sensibilidade de monges, aflorada pela prática, os levou à arte. Dogen escrevia sobre o Dharma como um grande poeta, assim como Pessoa fez algumas poesias como se fosse um monge.


Kōmyō Sensei, o monge, escreveu sobre nossa verdadeira face:

“Tira o pó da tua mente

E veja: não há espelho, não há poeira nem reflexo

Apenas as imagens de tua vida

Os anos tolos a passar com pressa

Os atos mortos em um passado que não volta…

Tira o véu de teu rosto

E sinta a máscara de tantos eus, indo e vindo

Em um furação de enganos, desejos e vontades,

Disfarces feitos de dores, ilusões e vaidades

Que ocultam de ti mesmo tua crua verdade.

Tira teu nome, tua pele, paixões e falsidades

E sejas livre como uma criança a festejar

Uma brisa suave na primavera

Ou o vazio de tudo o que te atormentas.

Tira todas as máscaras, e veja a beleza

De tua verdadeira face a se revelar.”

Matsuo Basho[1], o poeta andarilho, identificou o despertar em uma gota de orvalho:

“Ao sol da manhã

Uma gota de orvalho

Precioso diamante.”

Daigu Riokan[2], o monge poeta que viveu entre os séculos XVIII e XIX, sabia que seu coração extrapolava os limites de seu peito:

“Se quer conhecer
o verdadeiro coração
deste monge,
escuta a voz do vento
sob o céu estrelado.”

 

Dogen Zenji, o grande mestre, nos conduz ao topo de penhascos rochosos 

“Precisamente porque o Dharma

pode ser inscrito

apenas no topo de rochas altas

nem as ondas podem alcançar

ao longo da costa acidentada.”

Para além das palavras

Saber que as palavras não alcançam o verdadeiro Dharma, mas ainda assim nem sempre poder prescindir delas, tal é o dilema dos mestres. Monge Genshō conta que Saikawa Roshi muitas vezes não explica completamente algo para não privar o discípulo da oportunidade de chegar à resposta por si mesmo. Ainda assim, algumas vezes, as palavras são necessárias. Dogen, que tanto defendeu a prática acima de tudo, foi também um grande escritor. Escrevia poeticamente sua prosa e, ao mesmo tempo, tinha poemas diretos e cortantes.

Shohaku Okumura Roshi[3], a respeito do waka[4] de Eihei Dogen, apresentado acima, explica que “o Dharma pode ser inscrito apenas no topo de rochas altas além do alcance do pensamento discriminativo – uma observação que é diferente do uso comum da frase ‘transmissão separada fora dos ensinamentos’ para declarar o Zen superior aos ensinamentos escritos nos quais se baseiam outras escolas. Mas este waka parece expressar apenas a primeira metade de uma afirmação; para completá-lo, podemos acrescentar algo como o seguinte: ‘Devemos estudar os ensinamentos escritos e praticá-los em nossas vidas reais, que estão além do pensamento.”

A clareza da compreensão de Okumura Roshi, tão importante tradutor e comentarista da obra de Dogen, vem, justamente, de uma vida em que a prática e as letras se nutrem mutuamente. Ou seja, não é apenas uma questão de inteligência e estudo, mas disso tudo aliado à percepção direta que somente anos de prática intensa podem trazer. No final do ano de 1970, ele foi ordenado no monastério de Antaiji e lá participava de dez sesshins por ano, nos quais faziam 14 períodos de 50 minutos de zazen. Em 1975, ele foi enviado pelo seu mestre, Uchiyama Rōshi, a Massachusetts, EUA, para montar um zendō e lá passou a fazer 12 sesshins anuais. Mais tarde, tendo retornado ao Japão, em Kyoto, começou a trabalhar como tradutor além de continuar participando de todos os sesshins mensais, tendo mantido essa prática por 22 anos. Em 1993, foi para Minneapolis ensinar no Zen Center de Dainin Katagiri, onde passou mais dez anos dividindo a prática dos sesshins com cerimônias, dokusans, refeições com oryoki e períodos de samu (pois nos anos anteriores, fora o trabalho como tradutor, sua prática, segundo suas próprias palavras, era basicamente se sentar).

Mestre Okumura relata essa sua trajetória no livro[5] no qual analisa o Sutra das Montanhas e das Águas, um dos mais poéticos e belos textos de Dogen. Assim, aqui, encerramos este artigo com o caminho de um respeitadíssimo mestre Zen contemporâneo que é um grande tradutor, comentarista e professor do Dharma e, ao mesmo tempo, um rigoroso e disciplinado praticante. É um exemplo vivo de quando o zazen e as letras se encontram para servir à propagação dos ensinamentos de Buddha.

 

Texto de

Thomás Muryo 無量, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista.  Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.

Tamara Kakuji 覚慈, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen

 

Referências:

BASHO, Matsuo. Trilha estreita ao confim. Ed. Iluminuras, 2021.

OKUMURA, Shohaku. Dogen’s Freeing Verse: A look at the works of a Zen master who disparaged literature despite being a prolific poet. Acesso em: https://tricycle.org/magazine/dogen-waka-poetry/

_________. The Mountains and Waters Sutra: A Practitioner’s Guide to Dogen’s Sansuikyo. Wisdom Publications, 2018.

TEIXEIRA, Faustino. Mística Zen Budista no Coração do Cotidiano. Appris Editora, 2021.

[1] BASHO, Matsuo. Trilha estreita ao confim. Ed. Iluminuras, 2021.

[2] In: TEIXEIRA, Faustino. Mística Zen Budista no Coração do Cotidiano. Appris Editora, 2021.

[3] OKUMURA, Shohaku. Dogen’s Freeing Verse: A look at the works of a Zen master who disparaged literature despite being a prolific poethttps://tricycle.org/magazine/dogen-waka-poetry/

[4] Okumura, no mesmo texto, explica que “waka significa literalmente “poesia japonesa”, ao contrário de kanshi, que são poemas chineses”.

[5] OKUMURA, Shohaku. The Mountains and Waters Sutra: A Practitioner’s Guide to Dogen’s Sansuikyo. Wisdom Publications, 2018.

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