Seguimos nesta edição com as entrevistas com monges da sangha Daissen Ji, em comemoração aos 20 anos da comunidade. Neste mês temos o prazer de entrevistar o monge Kōmyō Sensei.
Kōmyō Sensei é artista plástico, Mestre em Ciência da Arte pela UFF, produtor e planejador cultural, escritor, biólogo, músico. Nasceu em 1962 e iniciou sua prática no Budismo aos 17 anos. Participou de retiros e frequentou locais de prática na região do Rio de Janeiro. Aos 28 anos, ainda como praticante leigo, começou a organizar grupos de estudos sobre o Budismo tradicional.
Em 1994 viajou à China onde realizou uma peregrinação pessoal a diversos templos budistas da região do sul da China, com o objetivo de conhecer mais profundamente a tradição espiritual a qual se dedica. Em 1996 filiou-se informalmente à escola zen vietnamita – escola do Inter-ser (Tiep Hien) – liderada pelo mestre Thich Nhat Hanh.
Em 2009 recebeu título de Mestrado em Ciência da Arte pela UFF (Universidade Federal Fluminense), com a tese “A Arte Zen e o Caminho do Vazio: uma investigação sobre o conceito zen-budista de Não-Eu na criação de arte”.
Em 2012, assumiu a postulação monástica pela escola Zen Soto Shu em cerimônia ocorrida no Templo Daissen, em Florianópolis. Em 19 de dezembro do mesmo ano recebeu ordenação monástica com o nome de Kōmyō (Luz que Alcança Todas as Coisas), tendo como Sensei o monge Meihō Genshō.
Monge Kōmyō é autor de diversos livros independentes, entre eles: “O Hóspede da Caverna”, “O Bosque de Bambus” e “A Arte Zen e o caminho do Vazio”, que abordam os fundamentos budistas em diversos campos de reflexão. É também responsável pela primeira tradução brasileira do importante texto Zen “O Sutra de Hui Neng”, publicado pela mesma editora virtual.
Nesta entrevista conversamos sobre sua trajetória e seu encontro com a Daissen.
Como foi o seu encontro com a comunidade Daissen?
Monge Kōmyō Sensei: Meu encontro com o Daissen foi antes do meu encontro com o Genshô Sensei, que eu conheci, se eu bem me lembro, no final dos anos 90, início do século 21, pelos sistemas de grupos, na época da internet ainda muito jovem, chamados mailing (mailing lists). Havia grupos associados ao Budismo e eu participava, eu era leigo no período. Genshô Sensei também participava, mais ou menos nesse período eu comecei, me afiliei, eu assumi os preceitos na Ordem, que é uma Ordem Zen vietnamita coordenada pelo Mestre Tich Nhat Hanh já falecido recentemente. E então eu praticava muito o Zen, mas isso foi ainda em um período em que conhecer o Zen, e conhecer sobre qualquer religião não era tão fácil como hoje em dia com a explosão da internet e a revolução da informação etc.
Eu iniciei minha prática no final dos anos 70, início dos anos 80 e era muito difícil você obter não só boas informações, informações fidedignas, né, mas também obter boa experiência, bons professores etc. Porque não havia internet nos anos 70 e nos anos 80. E era tudo muito difícil. Mas com o advento do computador e da internet eu comecei a ter contato com Genshô Sensei e, por muito tempo, meu contato foi mais de amizade, de trocar informações e conversar um pouco.
Em torno de 2005, talvez 2007, um pouco antes talvez, aí eu não tenho uma memória muito clara, eu comecei a conhecer mais o Genshô e numa conversa um dia eu confessei a ele que eu sempre senti uma vocação desde jovem para me tornar monge. Mas o processo para assumir o manto monástico na tradição do Tich Nhat Hanh era muito mais difícil e complicado, teria que sair do país. Ele preferia pessoas mais jovens, monges jovens que não tivessem compromisso. Aí eu perguntei ao Genshô Sensei e ele falou: “Venha fazer parte da Soto Zen, Soto Shu, você pode fazer parte da Daissen, do meu templo, eu posso lhe ordenar como monge”. Eu fiquei muito feliz! E aí iniciou um longo processo, porque a minha vida não é destituída de obstáculos e desvios, até realmente eu efetivar essa conversa.
Então, minha relação com a Daissen sempre foi uma relação de amor distante. Porque eu vivendo na região do Rio, em Niterói, nem sempre eu tinha recursos e condições para ir às práticas e eventos da Daissen. Mas com o tempo eu fui aprofundando o contato e fui me identificando demais com a forma de ensinar do Genshô Sensei, a sua bondade, a sua paciência infinita. A luta de organizar a Daissen naquele período, eu me identifiquei muito com a minha própria luta, de me estabelecer no Zen, no caminho monástico etc.
E daí a história seguiu até hoje, né. Continua sendo um amor distante, mas é menos distante hoje em dia. Eu me sinto muito feliz de fazer parte da tradição: a ética da Daissen, a honestidade, a fraternidade, isso é algo muito saudável, na minha opinião.
O que a Daissen significa em seu caminho como praticante e como monge?
Monge Kōmyō Sensei: A verdade é que a comunidade Daissen é todo meu caminho como Monge. Eu me tornei Monge na Daissen e ao longo dessas décadas eu continuo meu trabalho, meu esforço no aprimoramento pessoal, graças à estrutura da Daissen.
Como praticante, a Daissen foi uma porta de entrada para que eu efetivasse formalmente o meu caminho budista. Em uma grande parte do meu caminho budista nos anos 80, e uma primeira parte dos anos 90, eu me sentia muito pouco budista. Eu não tinha ainda conseguido assumir preceitos devido à falta de contato com bons locais de prática Zen e eu praticava, eu estudava, eu até tentava ensinar outros sobre a prática zazen, e traduzia alguns textos, mas tudo numa iniciativa muito pessoal, que eu considerava não muito legitimada. Não havia uma legitimação no que eu fazia, era muito autodidata, muito independente demais.
Eu participei então da Tradição do Thay, e pela primeira vez eu assumi os preceitos da mesma. Isso foi em 2001, eu acho. E eu queria seguir mais o caminho, eu admirei muito os monges da Tradição do Thay. Eles vieram no Brasil, dois monges e duas monjas. E como eu já disse em resposta anterior, aos 23 anos eu senti uma vocação monástica, mas estabelecer isso não era tão fácil assim.
E a Daissen, por meio do Genshô Sensei, foi para mim a grande oportunidade para que eu pudesse efetivar, formalizar o meu caminho no Zen. E um pouco depois me formalizar como monge nesta tradição.
Então, definitivamente, a Daissen tem um aspecto muito importante no meu caminho espiritual, tanto como praticante, como monge. É a minha casa e é uma boa casa. É uma casa muito confortável de se morar.
Ao longo desses anos como o senhor se encontra na comunidade?
Monge Kōmyō Sensei: Bom, eu sou um Sensei, eu consegui a duras penas receber essa honra do Genshô Sensei. Eu continuo ainda me sentindo muito inadequado nessa posição porque eu era um praticante atrapalhado, me tornei um monge noviço atrapalhado e continuo sendo um Sensei atrapalhado. Realmente sou. A minha identificação com o Zen e a própria comunidade Daissen é o ensino do Dharma propriamente dito, e a minha posição neste momento é uma posição de grande responsabilidade. Eu tenho consciência disso, e uma posição por desejo do Genshô Sensei, de herdeiro dele na tradição Zen. E esta posição é uma posição que me deixa muito atento à minha grande responsabilidade.
O Genshô Sensei é um gigante na história o Zen no Brasil, isto é inegável. Ele tem uma sombra enorme e eu não vou conseguir igualar a minha sombra com a de Genshô Sensei. Mas eu tento, eu procuro, eu tenho procurado fazer o possível considerando evidentemente as nossas questões pessoais e familiares. Porque os monges também têm isso, nós temos os nossos desafios pessoais, mas eu assumo o compromisso de me estabelecer como um professor de Dharma da Daissen e tentar da melhor maneira possível confirmar as esperanças de Genshô Sensei.
Há muitos anos, quando eu ainda era leigo, o Genshô Sensei veio fazer uma palestra sobre o livro dele “O Pico da Montanha” aqui no Rio de Janeiro. Eu fui, e eu comprei o livro. Na época não tinha muito dinheiro, mas peguei lá um pouquinho do meu dinheiro comprei o livro e pedi para ele assinar. Ele assinou algo que até hoje reverbera em minha memória, ele disse: “Para Komyo (eu já tinha recebido os preceitos, se não me engano), com grandes esperanças”. E aquilo tocou um sino muito profundo em mim. Genshô depositava em mim esperanças, e eu pensei: “Será que eu vou conseguir responder a isso de maneira adequada”? Aí ainda hoje em dia eu me lembro dessa frase do Genshô Sensei e ela para mim é como um farol: qualquer coisa, qualquer dificuldade, a frase volta “com grandes esperanças”. Então, a minha posição na comunidade é uma posição de assumir responsabilidades, mas com muita consciência dos meus limites e que ainda eu preciso caminhar mais.
Poderia deixar uma mensagem sobre os 20 anos da Comunidade Daissen Ji?
Monge Kōmyō Sensei: A Daissen Ji é definitivamente um exemplo de desenvolvimento de uma comunidade de prática Zen no Brasil. Realmente, eu digo isso sem exagero. O esforço feito não só pelo Genshô Sensei, como líder, mas pela Suuen San, Gendô San, e todos os praticantes e monges da Daissen, é um esforço digno de respeito.
A Daissen cresceu como uma semente que teve momentos de fragilidade, pareceu até que não ia vingar, mas acabou se provando muito mais forte, lançou raízes e continua lançando raízes no Brasil. É uma prática Zen honesta, ética, de fraternidade.
Obviamente, o templo Daissen, como instituição, tem as suas dificuldades, tem os seus problemas que precisa superar e resolver, mas a comunidade Daissen nestes 20 anos demonstrou ser definitivamente uma referência do estudo e da prática Zen em nosso país. Os méritos dos membros da Daissen que fizeram isso acontecer, e que continuam hoje em dia a fazer isso acontecer, são enormes, são méritos muito grandes. Esses 20 anos são apenas uma passagem, e assim é o ensinamento de Buda: tudo passa. E 20 anos também passam.
E a comunidade Daissen continua aprendendo a crescer e se estabelecer como um templo que oferece às pessoas o que há de melhor no ensino do Dharma de Buda. Oferece às pessoas a paciência de ensinar e de ouvir. A coragem de se estabelecer diante de dificuldades e pedras no caminho. Então, eu considero os 20 anos de Daissen um marco transitório, mas ainda assim digno de menção e de alegria. É um momento alegre, é um momento bom e extremamente fértil de possibilidades. Que todos os praticantes, monges e membros da Daissen, continuem trabalhando com afinco, concentrados no aqui e agora e conscientes de que ainda existe muito a se oferecer, muito a crescer. Então, eu faço votos de que os méritos da comunidade Daissen sejam sempre muito grandes. E que o Genshô Sensei continue vivendo com alegria, saúde, e paz para manter a sua grande sabedoria, plena e viva na Daissen.