Pontos de Contato Filosófico Entre o Budismo e o Cristianismo

 

Para o Budismo, a ideia de separação (entre os seres) é mera ilusão

 

Em continuação à série sobre as aproximações entre o Budismo e o Cristianismo, nesta edição iremos abordar os pontos de contato filosófico entre as duas religiões. Neste sentido, perifericamente, um desavisado poderia concluir que o Cristianismo tem um viés exclusivamente transcendente, e o Budismo seria predominantemente imanente. No entanto, em Mestre Eckhat, místico e filósofo cristão do período medieval, há várias chaves para um entendimento de aproximação entre estas duas religiões. Alguns escritores contemporâneos do Budismo chegam mesmo a dizer que as similaridades são tantas, que bastaria substituir algumas palavras (das escrituras de ambas as religiões) para que se chegue a entendimentos similares.

Na obra “O Livro da Divina Consolação”, por exemplo, Eckhart aborda, dentre outros aspectos, como é possível chegar à unidade do múltiplo com o uno, do homem com Deus (ou com o Dharma, na linguagem budista). Assim, nesta tentativa de “buscar Deus para além de qualquer realidade, onde tudo se esvai diante d’Ele”, não haveria – no estudioso tailandês Buddhadasa – a menor diferença entre a prática budista de esquecer-se do próprio “eu” para mergulhar no Absoluto e/ou Sagrado.

Obviamente, neste ínterim, pode-se questionar a completa negação transcendente do Budismo, focado na autopistis – autopoder – de que fala Pondé em seu livro “Crítica e Profecia”. Mas a própria igreja latina, diria Pondé, é acusada pela ortodoxia oriental de incentivar, em alguma medida, o “autopoder” e a esfera imanente de Deus. Sobre esse assunto, Buddhadasa diz não haver contradições:

“O significado preciso da palavra Deus dependerá do nível de educação do orador, da cultura na qual é falada ou do uso intencionado naquela ocasião. Ainda assim, o significado real e central será o mesmo para todos, isto é, ‘a coisa superior’. Trata-se de algo livre do poder do tempo, e que não pode ser aplicado na linguagem convencional”. Admite-se, em alguma medida, que mesmo com uma prática cotidiana focada na imanência, pelas interpelações filosóficas, os budistas entendem e aceitam a concepção de uma “força” superior, transcendente, que abarca inclusive similaridades entre “os conceitos de Salvação, Libertação, Reino de Deus e Nirvana”. (BUDDHADASA, 2014, pág. 26)

Para avançar sob esta seara, no entanto, faz-se necessário entender mais profundamente (e diferenciar) os conceitos de “imanência” e “transcendência”. Em Comte-Sponville (2011), por exemplo,

“Imanência (immanence) é a presença de tudo em tudo (imanência absoluta) ou em outra coisa (imanência relativa). O contrário, pois, da transcendência. É transcendente o que se eleva (scandere) além (trans); imanente o que permanece (manere) em (in). Diz-se especialmente do que existe na natureza e dela depende. Se tudo é material, se não existe nada, a não ser o universo ou a natureza (nada, a não ser tudo!), forçoso é concluir que tudo é imanente: a transcendência não é senão uma exterioridade imaginária e, como tal, imanente (a imaginação faz parte do universo) ”. (COMTE-SPONVILLE, 2011, págs 299 e 300)

Comte-Sponville se alonga no conceito ao dizer que a imanência, num sentido clássico, é tudo aqui que é interior, “o que permanece em (in-manere) algo ou alguém” (pág. 300). Ele lembra que em Husserl e nos fenomenologistas o aspecto imanente se expressa em tudo o que é interior à consciência. Já no materialismo, o imanetismo ganha contornos absolutos, pois “somente Deus, que não existe [para os materialistas], seria transcendente” (pág. 300).

Meister Eckhart em pintura centenária

Neste entendimento específico defendido por Comte-Sponville, o “Reino ausente” dos judeus/cristãos, num âmbito absoluto, é a própria condição de comunhão com Deus. Na Terra, essa “ausência” é preenchida por Canaã, a “Terra Sagrada” dos profetas ancestrais responsáveis pelo recebimento, compilação e transmissão de um conjunto de preceitos éticos capazes de, se levados a cabo, reaproximar as criaturas do Criador. Além disso, por transcendência se entende uma “superação de todo dado ou de todo limite […]” (idem, pág. 603). A liberdade seria possível, desta forma, pela possibilidade de transpor qualquer situação e, no mais da verdade, até aceitar a contingência e a privação tendo em vista uma dada finalidade (a união com o Sagrado, com “O Eterno”). Neste aspecto, há uma grande aproximação entre as vertentes cristãs e budistas, se se aprofundar sobre os conceitos de “Reino de Deus” e “Nirvana”, como será detalhado mais à frente.

Ainda de acordo com o mesmo autor, a transcendência é a exterioridade e a superioridade absolutas, “o outro lugar de todos os aquis (e até de todos os lugares), e sua superação” (pág. 602). Vale destacar que, em Comte-Sponville, transcendência também pode ser entendida como a ausência suprema e, por isso mesmo, “o auge da presença”. Assim, “‘o sentido do mundo deve ser encontrado fora do mundo’, escreve Wittgnestein. A transcendência é esse fora ou o supõe. É o Reino ausente” (Idem).

Vale salientar que este sentido de transcendência comporta variações, já que é transcendente tudo o que se encontra “além de”. Mas além do quê? Questiona Comte-Sponville. Além

“… da consciência (é o sentido fenomenológico: a árvore que avisto não está na consciência, é um objeto transcendente para a consciência); além da experiência possível, além do mundo ou de tudo”. (COMTE-SPONVILLE, 2011, págs. 602 e 603)

O autopoder é rechaçado pela ortodoxia

Em oposição a esta visão, há a abordagem teológica/filosófica da ortodoxia, destacada pelo filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, para quem o pecado mais temido […] é a auto-pistis (literalmente, ‘fé em si mesmo’), ou ‘suficiência’. Trata-se da ideia do ser humano como um ser suficiente, concebido no contexto exclusivo da ‘natureza natural’. (PONDÉ, 2013 – pág. 21)

Pondé lembra que, para a ortodoxia, o “homem é um ser sobrenatural ao qual a natureza é agregada”. Desta forma, a religião e o sobrenatural são encarados como o espaço do bem, “enquanto o mal se encontra ligado ao regime de imanência, ao que é deste mundo (o inferno é aqui) ”. O demônio, portanto, dentre outras definições, seria a crença exclusiva na materialidade, o que definitivamente não está no “script” nem de budistas, muito menos de cristãos.

Vale ressaltar, em complemento, que “Deus, e somente Ele, neste sentido, seria totalmente transcendente, pois é exterior a toda e qualquer experiência” (pág. 604), mesmo levando-se em conta as assertivas de Luc Ferry, para quem o homem também tem aspectos de transcendência, não porque seria exterior ao mundo ou à sociedade, mas porque não pode ser reduzido totalmente a um e outra: há nele uma capacidade de excesso, de desarraigamento, de liberdade absoluta, e essa ‘transcendência na imanência’ (a expressão é de Husserl) faz dele uma espécie de Deus, de que o humanismo seria a religião. (COMTE-SPONVILLE, 2011, pág. 604)

Especificamente sobre os aspectos de imanência em Mestre Eckhart (logo serão abordados os vieses de transcendência), há de se destacar que a introspecção, assim como ocorre na maior parte das abordagens budistas, pode ser entendida como um “desprender da vontade” que leva, invariavelmente, a transformar o homem num detentor da vontade divina (ou da vontade do Dharma, como diria Buddhadasa). Mas isso não ocorre por acaso, nem tampouco é uma expressão de mero “autopoder”, como poderia presumir alguns. Neste ínterim, “é preciso que os impedimentos da vontade própria se desfaçam, que o reconhecimento da liberdade como uma ligação e não como uma particularidade se configure” (Dourado, 2012, pág. 2).

Ou seja, haveria, portanto, uma “dimensionalização do eu”, que levaria invariavelmente a uma integração com o Sagrado, com Deus. É uma via que opta, em algum sentido, pela negação da clássica estrutura de sujeito-objeto, uma vez que a “vontade própria”, base do contraste que vem desde Platão (reforçado depois por Descartes) e que convida para o deslocamento rumo ao “outro mundo, o mundo ideal”, em Eckhart é desconfortavelmente dissolvida por algo que está além da anulação do indivíduo, “do apego ao próprio eu”. Assim, “ao assumir o ser de Deus, o homem assumirá a liberdade que o constitui” (idem, pág. 3). Portanto, [se] eu fosse para com as [imagens] tão livre da vontade própria a ponto de não ter me apropriado de nenhuma delas no fazer ou não deixar, com antes e com depois (…), ou seja, no presente instante, livre e solto para a mais amada vontade de Deus e para realizá-la plenamente, sem cessar (…), neste caso, em verdade eu seria sem impedimento por meio de todas as imagens, tão certo como eu o era quando ainda não era (Sermão 2, I,  p. 46)

Em continuação, a imanência presente na abordagem de Mestre Eckhart é uma via de aproximação com a própria mística oriental, cujo viés é essencialmente irracionalista.

Texto de Sonielson Luciano de Sousa. Psicólogo, jornalista, professor e praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referências:

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

BUDDHADASA, Ajah. Ensinamentos de Cristo, Ensinamentos de Budha. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1ª. Edição, 2014;

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Editora Vozes, 4ª. Edição, 1999;

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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

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MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

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