“Onde jaz uma carcaça, aves de rapina voam em círculo e descem. ” A vida e a morte são duas coisas. Os vivos atacam os mortos, em proveito próprio. Os mortos nada perdem com isso. Ganham até, desaparecendo. Ou parecem ganhar, se é que devemos pensar em termos de perda e ganho. Será que abordamos o estudo do Zen com ideia de que existe algo a ganhar com isso? Essa pergunta não pretende ser acusação implícita. É, no entanto, uma pergunta séria.
Onde se faz um espetáculo em torno de “espiritualidade”, “iluminação”, ou simplesmente de “ligar”, isso muitas vezes acontece porque abutres estão esvoaçando em redor de um cadáver. Esse voltear, esse voo em círculo, esse descer, essa celebração de uma vitória não é o que significa o estudo do Zen (embora possa ser um exercício altamente útil noutros contextos e enriquece as aves de rapina).
“O Zen a ninguém enriquece. Não há ninguém para ser encontrado. As aves podem vir e esvoaçar em círculo por algum tempo no lugar onde se pensa estar o Zen. Mas, bem depressa, deslocam-se para outras paragens. Quando já se foram, o “nada”, o “ninguém” que ali estava de repente aparece. Isto é o Zen. Ali estava o tempo todo, mas os abutres não o viram, pois não era seu tipo de presa.” (Thomas Merton, Zen e as Aves de Rapina).
Como não podia deixar de ser, desde a infância fui ensinado que a conquista, o domínio, a vitória ou o destaque sobre os demais são sinônimo de sucesso. Os vencedores são sempre dignos de elogios e exaltação. Contudo, como não é possível atingir sempre o que os outros esperam, desde cedo foi possível sentir a pressão e a frustração como uma espécie indefinida de desconforto que me acompanhou durante a maior parte da vida.
É claro que somado ao modelo de aquisição como meio de vida, profundamente cultuado pela sociedade, também em algum momento surge a sensação de desamparo diante da ausência de explicação da própria vida: seu sentido, a dúvida se a existência irá perdurar ou não após a morte, ou seja, o dilema existencial.
Desse modo, como a complexidade do dilema existencial surge juntamente com o modelo vigente de cobrança e resultado, pautado pela ideia de perda e de ganho, isso acabou gerando muita ansiedade que, no entanto, depois de algum tempo se tornou combustível para a busca de uma saída desse estado de espírito, a busca pela solução desse impasse.
Contudo, pelo menos na minha experiência foi assim: essa busca, em um primeiro momento, teve como objetivo alcançar algo consistente e concreto que pudesse resultar na solução mágica de todos os problemas e aflições, como um medicamento eficaz que tenha como efeito estancar todo tipo de sofrimento e proporcionar um estado de constante satisfação.
Neste contexto, a afirmação de Thomas Merton faz todo sentido: “Onde se faz um espetáculo em torno de ‘espiritualidade’, ‘iluminação’, ou simplesmente de ‘ligar’, isso muitas vezes acontece porque abutres estão esvoaçando em redor de um cadáver”.
Assim, quando me agarrei à ideia de que algo bastante concreto seria alcançado e os problemas emocionais, de relacionamento, existenciais, psicológicos etc. seriam solucionados, de preferência rapidamente, “como um abutre ávido por alcançar um cadáver”, criei uma expectativa fantasiosa a respeito do que poderia ser o despertar, na medida em que isso foi confundido com uma premiação pautada pelo modelo estabelecido na sociedade. Mas que, pelo que pude perceber muito mais adiante, é muito diferente disso, sendo na verdade totalmente o oposto.
No início nada disso era muito claro para mim. Somente agora, depois de 14 anos, alguma noção do que houve começa a surgir.
Meu primeiro contato com Sensei Genshô, por meio da internet, foi em meados de 2008. Nosso contato foi se tornando diário e se aprofundando. Mais tarde tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente e de me tornar seu aluno.
Conseguimos estabelecer um Centro de Dharma em minha cidade, Guaratinguetá (SP). Tínhamos um local onde praticávamos Zazen e também comecei a participar de Sesshins em Florianópolis. Em 2014 recebi meu rakusu e também meu nome do Dharma: Ji Hou.
Contudo, como eu havia agarrado aquele tipo de ideal, como mencionei, aos poucos o interesse pelo Zen foi diminuindo, pois aquilo que eu almejava foi se desmanchando como uma miragem e ao final, como era de se esperar, não restou nada, mais nada para agarrar.
Isto fez surgir uma interpretação niilista da vida, a sensação de que a existência seria um mero acidente e tudo estaria fadado à aniquilação, gerando angústia e insatisfação como pano de fundo de todos os acontecimentos.
Foi nessa época que me afastei do Daissen-Ji e decidi percorrer um caminho solitário. Mas nunca deixei de praticar Zazen diariamente, o que, paradoxalmente, me trazia equilíbrio e satisfação, embora encarando a vida como sem sentido e, às vezes buscando acreditar em algo que trouxesse preenchimento. Foi um período confuso e cheio de altos e baixos.
Sempre tive uma mente inquieta e agitada, procurando encontrar a resposta para todas as questões. Sensei Genshô sempre me advertia disso: “Desista desta mente cogitadora”, ele dizia. Em um primeiro momento, eu percebia e a deixava, mas logo a inquietação voltava. Apesar de ter me afastado, algumas vezes me comunicava com Sensei, que me ouvia e orientava pacientemente.
Até que em meados de janeiro deste ano, uma questão surgiu: Se o budismo trata exclusivamente de questões verificáveis, como podemos concluir que o efeito do karma, que, a princípio, é não verificável após a morte, se manifesta novamente em uma “nova vida”?
Então Sensei Genshô fez uma advertência: “Quando você vai cessar sua mente cogitadora? Tudo é agravado por você seguir um caminho solitário.”
Naquele momento percebi que a situação se agravava e a mente ficava cada vez mais inquieta. Foi quando pedi para retornar à Sangha para poder ter acesso aos ensinamentos por ele proferidos com maior constância e comprometimento.
Assim, tive a oportiunidade de fazer um Dokusan com Sensei, que na ocasião expôs um ensinamento que me tirou daquele limbo: “Tudo que se apresenta neste momento é consequência do que se apresentou anteriormente. Por isso, por dedução, sempre haverá continuidade. Então, a aniquilição não faz sentido e toda manifestação tende, como consequência, à continuidade. Com isso, a manifestação cármica presente prova que houve uma manifestação cármica anterior, da qual esta manifestação é o resultado, e assim sucessivamente, o que resulta na conclusão lógica de que haverá continuidade como consequência da presente manifestação. Ou seja, não há início, nem fim.”
Com esta máxima, a noção de aniquiliação foi desfeita e tudo ficou claro: há impermanência, mas o novo sempre surge, a impermanência não caminha para aniquilação, para a inércia. Ao contrário, sempre houve e sempre haverá continuidade e a prova disso é a nossa própria manifestação. E ainda alertou: “É claro que esta continuidade não é a contininuidade de um eu, mas a continuidade de ondas cármicas, com as mesmas tendências de repetição, assim como ondas no oceano.”
Diante deste ensinamento o viés de pessoalidade que poderia ser equivocadamente admitido como a continuação de uma mesma tendência foi superado, embora, para dar este passo precisei suplantar um grande obstáculo de minha mente que era a ideia de aniquilação. A aniquilação da ideia de um eu, que por sua vez não possui qualquer realidade, era justamente o que vinha me impedindo de ver com maior clareza.
Como resultado deste entendimento, posso afirmar que o sofrimento que estava baseado na ideia de perda aos poucos está se dissolvendo e uma leveza e satisfação maior com a vida está se instalando.
Por isso sou grato à paciência de Sensei Genshô, que nunca me abandonou e sempre me orientou na direção certa, mesmo que por 14 anos não houvesse entendido, este momento chegou. Mas digo isso com toda humildade, pois, ao contrário de me trazer uma ideia de ganho, isso trouxe a leveza de não precisar ser especial, isso concedeu-me a paz da possibilidade de ser comum e desaparecer além da busca equivocada e angustiante por garantia, além da busca equivocada e angustiante pela manutenção da ideia de um eu.
Muito obrigado Sensei!
Depoimento de Jin Hou san. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.