Acabei de raspar a cabeça, me olhei no espelho e a imagem refletida me disse: “Por que o Sensei quer uma pessoa como tu como monge, tu és um cara cheio de falhas, o que dizes, na maioria das vezes, não corresponde ao que pensas ou fazes. Quem te conhece de verdade sabe que tu és uma fraude, que o monge que todos veem está longe do ser humano por baixo das roupas”. Ainda tentei argumentar com ele que todos somos assim, somos seres humanos com falhas e características negativas e que buscamos nossa melhor versão o tempo todo e que um monge não tem que ser uma pessoa perfeita e que devemos nos focar nos nossos aspectos positivos. Mas ele não se dava por vencido, apelando para minha memória e trazendo à tona todo meu passado manchado com lembranças que eu tento a todo custo varrer para baixo do tapete. “Ele não te conhece” disse a imagem, “não sabe quem és, mas nós dois sabemos a verdade”. Esse diálogo se repete por algumas vezes ao dia e por muitos dias e em cada vez o espelho apresenta mais argumentos que põem em questão se mereço usar o manto de Buddha.
Levei algum tempo para entender que a imagem que fazemos de nós mesmos e dos outros é tão consistente e real como um sonho e que o sentimento de ser um impostor tem a ver com as expectativas e resultados rápidos que pretendemos conquistar. Ora, voltamos sempre para o mesmo ponto, a preocupação com nossas vidas e nossas escolhas e se somos dignos de estarmos onde estamos. A Vida não tem nada a ver conosco, não é para nós ou sobre nós. Estamos demasiados preocupados se somos dignos ou não de estarmos no caminho de Buddha ou de qualquer caminho, preocupados em sermos merecedores do caminho que escolhemos.
Talvez o primeiro grande equívoco esteja justamente nisso, não escolhemos, foi o caminho quem nos escolheu, senão pense em quantas portas batemos e muitas vezes na mesma porta, e ela sempre esteve fechada ou apenas encostada e não percebemos, até que finalmente ela se abre e entramos, porém não ficamos por muito tempo, logo saímos, até que em algum momento resolvemos entrar e fechar a porta às nossas costas e pensamos que estamos fazendo a escolha de entrar.
Na verdade, o caminho escolheu, ele nos chamou e ele abriu a porta e ele a fechou, não há retorno. Não existe algo como sermos ou não dignos de estarmos aqui, não existe um impostor, o que existe é um ego que anseia por algum reconhecimento e então ele pede por mais ou coloca-se abaixo para se sentir menos e desta forma também receber reconhecimento, mesmo que seja o de ser menos e não merecedor.
Se a existência ou o Tempo-ser é, como diz Dogen Zenji, apenas um único ponto a fluir, então do que temos medo se tudo converge para o agora ou para o vazio e no vazio não existe o nada ou o tudo, apenas o vazio onde não há distinções e separações, onde não existe um ser ou não ser digno de algo?
Devemos parar de nos julgar, de fazer considerações sobre nossa prática, de nos examinarmos e nos compararmos, pois é pelas considerações e comparações que percebemos as diferenças, ou melhor, que criamos as diferenças e que nos conscientizamos do contraste e o contraste gera a polaridade e a divisão e toda a gama de confusões possíveis.
Porque vemos o alto é que nos sentimos baixo, porque vemos o bom é que nos imaginamos ruins, porque vemos o digno é que nos imaginamos não dignos. Aquele que um dia foi e aquele que um dia virá a ser estão presentes neste mesmo agora e nos imaginarmos não dignos é um grande desperdício de tempo e energia.
Deveríamos apenas seguir em frente sem expectativas ou promessas ou comparações, pois isso é apenas fruto da mente que separa e julga e rotula e divide, uma mente que é também aquisitiva e deseja de maneira desesperadora que nos tornemos melhores e mais dignos, como se isso fosse possível. Em Shunnya, no vazio, não existem melhores ou piores, dignos ou não dignos. Tudo apenas existe sem distinções ou separações, na verdade nem o existir acontece, pois o existir é o contraste do não existir e nessa linha de raciocínio nem o acontecer, pois nasce do não acontecer, apenas Shunnya.
Se, como disse Huineng, “A mente não é um espelho”, com quem a pessoa do início de nossa conversa está discutindo sobre ser ou não digno do manto de Budha? Ela discute com suas expectativas e com a imagem que criou ou criaram dela; ela dialoga com sua vontade de ser mais ou melhor, com seus desejos e anseios. Ela discute com uma fantasia, uma ilusão. Levamos tudo demasiadamente a sério distribuindo valores desmedidos a nós, aos outros e às situações. Não deveríamos transformar nossas vidas num fardo pesado a ser carregado, numa lista de objetivos e metas a serem cumpridos, não é isso que a vida espera de nós.
Creio que devemos apenas fruir a vida sem nos impormos ou impormos aos outros um peso desnecessário e incômodo. A vida espera que sejamos nós mesmos, que descubramos quem somos e quais nossas potencialidades e que as pratiquemos como única maneira de sermos livres e felizes, ao invés de arrastarmos um corpo cheio de julgamentos e críticas e vontades e desejos sem fim, desejos e vontades na maioria das vezes que não são nossos, mas sim que foram estimulados por algo ou alguém que está fora de nós. Quando paramos para refletir, quantos de nossos anseios são verdadeiramente nossos e quantos suscitaram de uma vida vivida fora de nossas possibilidades e potencialidades?
O que torna Budha, Mahakasyapa, Ananda ou Huineng ou nossos professores e amigos pessoas tão diferentes de nós, a ponto de não nos sentirmos dignos ou merecedores de estarmos ao lado deles ou trilhando o mesmo caminho? Penso que todos sabemos a resposta.
Texto de monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.