Texto da Série “Memórias de Um Casal de Peregrinos”
Chegamos a Ho Chi Minh em pleno ano novo vietnamita, sem saber. Depois de horas – literalmente – no aeroporto esperando o visto sair, pegamos um táxi que nos deixou a um pouco mais de 1km de onde deveria ter nos deixado, alegando ser feriado e não poder circular na área central. Perdidos, sem acesso à internet, sem falar a língua local, saímos do carro à procura do hotel que aparentemente não existia. Um moço, sem falar inglês, conseguiu entender aonde íamos. Com uma mão abarcava um punhado de amendoins, com a outra gesticulava o que traduzimos por “sigam-me”.
Pelas ruelas e becos escuros e inóspitos, guiando-nos por quase 20 minutos, ora ou outra oferecendo as oleaginosas, deslizamos Saigon adentro, por onde, se precisássemos, não conseguiríamos voltar. Podia ser uma cilada, uma emboscada, um assalto, um sequestro. Mas era um guia não-contratado, que, sem nada aceitar de recompensa, a não ser que pegássemos três ou quatro grãos que nos oferecera, deixava-nos à porta do hotel, reservado na internet dias antes, sem olhar para trás. Despediu-se e sumiu.
Essa nossa primeira ida ao lugar onde – à época – há um pouco mais de meio século, Thich Quang Duc se queimara até a morte, prometia nos ensinar muito sobre se entregar aos seres, aos outros e a si mesmo; uma vez, em termos de realidade última, não haver “os outros”.
Dias antes de nossa chegada ao Vietnã, passaríamos 12 dias incomunicáveis em um retiro no interior do Camboja. Minutos antes de pegarmos o transporte para o retiro, percebemos que não teria como sair dele a tempo de pegarmos o voo, uma vez que naquela cidade não existia serviço de agendamento de táxi, tuk-tuk, bicicleta, barco, nada que fosse capaz de nos levar ao aeroporto com hora marcada. E o tempo entre terminar o retiro e fechar o portão de embarque estava minimamente calculado.
No local de onde partiríamos rumo ao centro de meditação, uma jovem ofereceu-nos ajuda por ter notado uma certa tensão em nosso semblante e em nossa conversa. Ao lhe explicar, sem saber o quanto me entendia, com olhar acolhedor, ela pegou seu telefone, fez uma meia dúzia de ligações e nos assegurou que conseguiríamos pegar o nosso voo não-reembolsável para o Vietnã. Não nos dando nem tempo de saber seu nome, sumiu.
Decidimos seguir para o retiro e provavelmente perder o voo. Já que não tinha mais nada a ser feito. Ao final dos dias de meditação, quase como uma miragem do oásis no deserto, avisto um senhor que parecia me procurar, diante do sorriso e o aceno que deu ao cruzarmos os olhos. Ele havia me reconhecido de alguma discrição que recebera. Com palavras de ordem, “vamos, vamos, porque sua amiga pediu para eu não te atrasar de jeito nenhum”, seguimo-lo. Aparentemente, era o tio daquela menina cujo nome nunca saberei.
Essas pessoas, essas atitudes, iam modificando, aos poucos, as nossas próprias atitudes. As nossas defesas e precauções já eram outras: não parecermos ingratos e estarmos sempre, por exemplo, com frutas secas para oferecermos aos desconhecidos que certamente nos ajudariam – muitas vezes pela necessidade deles em se fazerem úteis, do que pela nossa real necessidade de assistência.
Reconheci o olhar despretensioso do nosso guia de ano-novo-vietnamita – recordo até que terminara sua missão cantarolando – no rosto de um jovem casal que, no norte da Tailândia, nos oferecera carona sem nem mesmo termos pedido.
Entre prostrações, tentavam dizer-nos que “tudo bem”. O homem, tirava do banco de trás quilos de roupas e objetos, jogando-os no porta-malas, para que tivéssemos algum conforto naquela carona de que não precisávamos – era uma caminhada de 30 minutos, sem malas –, mas que havíamo-nos aceitando.
Nessa mesma estrada, em outra ocasião, quando, de fato, pedíamos carona, um senhor parou, não para que entrássemos no carro, mas para se desculpar, dizendo que embora o carro dele estivesse indo para a direção que queríamos, logo ele entraria em uma curva à direita, e, portanto, não poderia nos levar, perguntando se, no entanto, precisávamos de algo a mais.
Reparávamos que, em muitos desses países onde o budismo tinha ganhado importância, mesmo que somente histórica, caixas de supermercado, atendentes em aeroportos e rodoviárias, vendedores de lojas etc., quando nos entregavam algo (documento, troco, sacolas), sempre o faziam utilizando as duas mãos. Às vezes uma cédula de Thai Baht[1] chegava a nós em um caixa de Seven Eleven, por ambas as mãos do atendente, às vezes um passaporte era devolvido pela mão direita, enquanto a esquerda encostava no pulso direito, mostrando que fazia o serviço em conjunto com a outra mão, ao menos na intenção.
Começamos a nos perguntar o que levava aquelas pessoas, sempre tão atentas aos seus gestos e atos, a quererem simplesmente nos ajudar.
Certamente esses são atos pequenos quando comparados a se entregar às chamas (e não à morte), ou a um exílio de uma vida inteira, em favor de muitos. Porém, acontecem em um cenário muito importante, a vida cotidiana, e é lá o espaço perfeito para ajudar os seres. Tanto, que no décimo passo, quando apascenta o boi, aquele que tanto lutou para despertar, ao invés de se isolar, vai ao mercado encontrar as pessoas comuns.[2] E foi na tentativa de sentir e entender melhor essa capacidade de agir sem deixar pegadas, de seguir o caminho dos pássaros, de ajudar e sumir na imensidão do céu – e das ruas – que decidimos ir ao museu da guerra do Vietnã e da Primeira Guerra da Indochina em Ho Chi Minh. Lembro-me, agora, do sutra de Vimalarkiti :
“Como todos os seres estão doentes, eu estou doente. Se todos os seres sencientes pudessem ser curados, eu também o seria. (…) quando eles ficam doentes, o bodhisattva fica doente. (…) você estava me perguntando qual é a causa da minha doença? A doença do bodhisattva provém de sua grande compaixão”. (ROMMELUERE. 2007, p.86)
No pátio da entrada, tanques, aeronaves cheias de armas, toda aquela estupidez de que é capaz a mente humana, nascimento tão privilegiado, mas ilusório e dormente. A cada passo, cada reportagem, destroços, fotos, declarações, é um caminho em direção aos votos[3] que viríamos a fazer anos depois.
With a wish to free all beings
I shall always go for refuge
to the Buddha, Dharma and Sangha
until I reach full enlightenment.
Enthused by wisdom and compassion,
today in the Buddha’s presence
I generate the Mind for Full Awakening
for the benefit of all sentient beings.
As long as space endures,
as long as sentient being remain,
until then, may I too remain
and dispel the miseries of the world.
Com o desejo de libertar todos os seres
Eu sempre irei me refugiar
ao Buda, Dharma e Sangha
até alcançar a iluminação plena.
Inspirado por sabedoria e compaixão,
hoje na presença do Buda
Eu gero a Mente para o Despertar Pleno
para o benefício de todos os seres sencientes.
Enquanto espaço existir,
enquanto seres sencientes existirem,
até lá, que eu também exista
e dissipe as misérias do mundo.
Cinco anos após nossa ida ao Museu dos Vestígios de Guerra (em vietnamita Bảo tàng chứng tích chiến tranh), quando estávamos nos Himalaias, em Dharamsala, havíamos planejado uma noite curta, para conseguirmos chegar ao templo do Dalai Lama cedo, e podermos, quem sabe, olhá-lo a poucos metros de distância.
Não sabíamos, ao certo, como funcionava essa solenidade, ainda não havíamos frequentado, tampouco, centros de meditação Vajrayana, mas sabíamos que precisávamos de um radinho à pilha (a única forma de se ter acesso às traduções simultâneas em diversas línguas do discurso feito em tibetano), de um crachá – conquistado depois de horas e horas na fila – e de paciência. Perguntei ao dono do restaurante onde comíamos diariamente, um simpaticíssimo senhor refugiado tibetano, quanto seria um preço não superfaturado de um radinho. Sem responder, ele trouxe o dele e nos disse: “pode levar, mas verifique as pilhas”.
Pilhas novas, fone, tudo certo. A noite parecia passar muito lentamente. Uma dor lancinante na sola do pé, acordou Thomás, quem me alertou com uma voz tão firme que eu desconhecera: “cuidado, tem um bicho na cama, fui picado! ”. Era um escorpião. O lençol branco, parecia neve, eu fiquei gélida. Olhei para o Thomás cumprindo o que ele sempre me instruía: “precisamos nos olhar como se fosse a última vez, porque nunca saberemos se não será esta a última vez”. E nós, no quarto da pousada mais barata que tínhamos encontrado, sem recepcionista, sem guia da cidade, telefone de emergência, nada. Eu não sabia nem onde seria o hospital mais próximo. Olhei para o meu marido já com lágrimas: “o que vamos fazer? ”. “Salvar o escorpião, se alguém o encontrar, pode matá-lo”.
Tiramos fotos dele, para o caso de ser preciso identificar a espécie numa possível ida ao hospital e, em meio ao que seria uma madrugada histórica para nós, estava eu saindo mato adentro, para que o escorpião não fizesse mal a ninguém, e nem ninguém a ele. “Sabedoria e compaixão”. Entre uma revista e um pote de plástico, lá estava o peçonhento. Quanto mais me enfiava no mato, mais pensava que deveria ser o caminho oposto, que deveria é estar buscando alguma ajuda para nos levar ao hospital. Deixara Thomás sozinho, ele não conseguia andar. Eu não raciocinava, só andava. Joguei-o. Corri de volta.
Agora já era quase cinco da manhã. Devo conseguir ajuda. Saio, mas não avisto ninguém. Volto. Thomás não está mais com cara de morte, pois pesquisou na internet e viu que, apesar da dor e do inchaço na sola do pé, pela evolução dos sintomas e pela aparência do escorpião, aquela não deveria ser uma situação tão perigosa quanto temêramos no princípio. Se tudo desse certo, a dor seria o limite do nosso problema. Ele apenas me disse que se chegamos até ali, não iríamos perder a oportunidade de ouvir o Dalai Lama e que, como não apresentava suores frios e nem febre, não precisaria ir ao hospital.
Levávamos cada um uma almofada, e a passos lentos, mancando um pouco, seguimos ao templo Tsuglagkhang. Com duas canecas improvisadas – pois de última hora descobri que comeremos pão de tsampa[4] e beberemos o famoso chá com manteiga tibetano, ofertados pelos monges, antes da palestra –, levo, também, a tranquilidade de perceber que não foi dessa vez. Thomás parece melhor a cada passo.
A fila dos homens ia muito mais rápida do que a das mulheres. Thomás vai entrar antes, e lá o procuro. Sem celulares – não é permitido levar nem para fotos, pois a preocupação com a possibilidade de um atentado contra o líder tibetano é onipresente e a segurança, feita por soldados indianos, é rigorosa –, naquele mar de gente, sei que será difícil encontrá-lo, mas chegamos bem cedo, eu poderia até perder tempo perambulando pelo local, mas não queria é perder um lugar mais próximo da passagem de Dalai Lama. No dia anterior havíamos ido estudar o terreno, então tínhamos em mente uns cinco lugares possíveis.
Entrei! Não parecia o mesmo lugar. Quanta gente! Quantos monges! Sentados a uns quatro metros da passarela por onde ele passaria, tentando sincronizar o rádio que compartilhávamos na estação que transmitiria os ensinamentos em inglês, aparecem monges ora carregando quilos de pão, distribuindo um para cada pessoa, ora segurando jarras gigantes de onde saía quentinho o chá amanteigado. Do nosso lado, um pai e um filho tibetanos tinham, cada um o seu rádio, sua xícara e sua maneira própria de comer o pão. Imitávamos. Molha-se o pão no chá. Claro! Pão com manteiga, boníssima ideia, na verdade.
Não conseguia parar de me sentir privilegiada. A história que inventamos para nós acabara de nos levar a um grande marco: três dias de ensinamento sobre bodhichitta que serão fechados com o sutra do coração e um voto de bodhisattva.
De repente, no telão, avistamos o carro estacionando. Parece que ele está com certa dificuldade de locomoção. Acabo escutando a conversa entre uma leiga e um monge que lhe explica que your holiness, como é chamado pelos budistas tibetanos, acabara de sair de uma forte gripe, em razão da qual chegou a ser hospitalizado. No mesmo ano, meses depois, fomos a outras sessões de ensinamento proferidas por ele, nas quais ele parecia, inclusive, ter rejuvenescido. Um ano depois, inclusive, em outro encontro como aquele, parecia ainda mais jovem e serelepe do que nos três anteriores. E nesse último o vi de muitíssimo perto. Ele não só me estendeu a mão, como seu olhar, por segundos, mas os levarei por anos.
Tenzin Gyatso, autor de tantos livros que ocuparam nossas mentes, por anos e anos, autor do meu primeiro encontro com a Vacuidade (Shunyata), imagem tão onipresente na mídia, personificava ali, para mim, a força de Avalokiteshvara, ou Chenrezig, como o bodhisattva da compaixão é conhecido no Tibete.
Faltando ainda o que calculara como um terço do tempo do evento, o rádio que Thomás e eu compartilhávamos perdera a estação e não mais escutávamos o intérprete. Tentei achar outras línguas que nos fossem compreensíveis, mas parecia que nenhum esforço faria aquilo possível. Começamos a seguir as prostrações como ecos de falas que, entretanto, não compreendíamos. De repente, nossos companheiros de assento, percebendo a baixa que havíamos sofrido, entregam-nos um de seus rádios. Sem titubear, sorrio e aceito.
E assim, com os joelhos na terra, firmamos um voto que nos acompanhará para sempre, “enquanto espaço existir” cá escolheremos estar para ajudar todos os seres a se libertarem do sofrimento.
Caminhando Com o Pé Inchado e o Coração Transbordando
Saímos do templo tão absorvidos pelo clima da cerimônia que eu até me esqueci das dores no pé. Somente minutos, e muitos passos, depois, nas infindáveis ladeiras de McLeod Ganj, o subúrbio de Dharamsala que fica logo antes de Dharamkot, subindo as montanhas, a dor voltou e me lembrei da picada do escorpião.
Passamos em uma livraria para comprarmos a autobiografia do Dalai Lama e caminhamos de volta em direção ao quarto que alugamos. O local da picada estava desinchando e, no fim, deu tudo certo para todos nós, Tamara, o escorpião e eu. No novo livro, encontrei a seguinte fala:
“Compaixão e amor não são meros luxos. Como fontes, tanto internas quanto externas, são fundamentais para a continuidade da sobrevivência de nossa espécie. Por um lado, constituem a não-violência em ação. Por outro, são a fonte de todas as qualidades espirituais: da tolerância ao perdão, e de todas as virtudes. Além disso, são exatamente as coisas que dão sentido às nossas atividades, são elas que as tornam construtivas.” (LAMA, Dalai. 2002, p.135)
Era isso o que sentíamos desde nossos contatos iniciais com o Dharma, a compaixão e o amor dão sentido a toda e qualquer coisa que façamos em nossas vidas. Metta Bhavana, por exemplo, sempre ocupou um lugar de destaque nos nossos anos de prática Theravada, pois sentíamos que era uma técnica que nos despertava a sensibilidade para as dores do mundo e nos tirava do centro de nossas próprias preocupações e cuidados, e o Thonglen[5] foi a técnica que mais nos atraiu dentre tantas do Budismo Tibetano.
Temos por nós que conhecemos alguns bodhisattvas ao longo de nosso caminho que muitas vezes não se consideram como tais por pertencerem a uma tradição que não trabalha com tais votos ou mesmo por serem leigos que levam uma vida comum e nunca chegaram a ouvir falar de tais seres, mas que na prática agem como tais.
Anos depois, logo antes do que viria a se tornar a pandemia de 2020, recebemos a visita de minha mãe na Tailândia. Ela já havia feito, no Brasil, um retiro de meditação conosco e completado dez dias repletos de horas de meditação, mesmo sofrendo de uma doença que lhe causava muito desconforto físico. Então, depois de ouvir tantas histórias, ela quis conhecer os locais, pessoas e traços culturais sobre os quais tanto falávamos.
Numa certa manhã, caminhávamos com ela por uma sala de meditação vazia em um monastério Theravada da Tradição da Floresta, olhando as estátuas e pinturas de Buddhas, Nagas e monges ancestrais, quando fomos supreendidos pela chegada silenciosa do abade local. Ele perguntou se ela era nossa mãe e após contarmos um pouco da história que a levou à Tailândia, ele se mostrou muito feliz por termos proporcionado a ela tais contatos com o Dharma. A partir daí, lhe deu total atenção, explicando o significado de cada estátua, a origem das pedras utilizadas nas obras e contou sobre como décadas antes havia iniciado a construção daquele local, escrevendo ao rei e pedindo que lhe cedesse as terras para a criação do monastério.
Ao terminar, se despediu e nos deixou naquela enorme sala, que então parecia muito mais rica e significativa após sua fala. Por dias, minha mãe comentou sobre como o olhar e a voz daquele monge a impressionaram, sobre como ele parecia transbordar amor mesmo nas palavras mais simples. Até hoje, ela guarda essa impressão. E isso não nos é nada incomum, pelo contrário. Não foram raras as vezes que nos sentimos tocados em conversas triviais com alguns monges e monjas de diferentes tradições.
Agora, ao narrar esses acontecimentos, me lembro da descrição que um bhikkhu ocidental fez de um de seus primeiros contatos com Ajahn Chah:
“Uma das minhas mais antigas lembranças durante os primeiros meses com ele foi ouvir alguém me chamar e, me virando no brilho da luz do sol, eu sendo abraçado por um sentimento da coisa mais próxima de amor puro que eu já experimentei – era ele apenas parado ali sorrindo para mim. Ele também cuidou bem de nós e, embora às vezes repreendesse, zombasse ou nos trouxesse de volta à realidade de diferentes maneiras, não se sentia nada além de uma profunda e genuína preocupação pelo nosso bem-estar por trás de tudo – ao menos depois que você se recuperasse.”[6]
Voltando à nossa experiência em Dharamsala, os votos que fizemos ao lado de tantos refugiados das mais diversas idades, pessoas cujas histórias de vida duríssimas não foram capazes de tirar de seus olhares a bondade e a devoção, pareciam marcar uma nova fase em nossas vidas. Aqueles votos traziam uma nova energia à nossa prática ou talvez redirecionassem uma energia preexistente. O fato é que nos sentíamos inspirados e comprometidos com o caminho dos bodhisattvas.
A vida em McLeod Ganj é muito diferente das outras regiões da Índia que conhecemos. Os tibetanos são a imensa maioria dos moradores da cidade e caminham pelas ruas fazendo deslizar pelos dedos as contas de madeira ou pedra de seus malas[7], enquanto seus lábios estão sempre em movimento espalhando mantras pelos ares. Por toda região, existem rodas de oração que são giradas pelos transeuntes, bandeiras tremulam em todas as direções espalhando preces pela paisagem. São meios hábeis corporificados que dão um clima sagrado ao cotidiano, mesmo com todos os turistas ocidentais e indianos subindo e descendo as ruas, negociando preços de incensos, sinos e estátuas de divindades ou conversando em voz alta nos cafés.
É interessante notar que sem nunca termos nos tornado, de fato, praticantes vajrayanas, tenhamos sido marcados de forma tão importante pelos votos de bodhisattva que pela primeira vez fizemos no templo do Dalai Lama. Hoje, tendo centrado nossas vidas exclusivamente no Zen, repetimos diariamente a versão dos votos feitas na nossa tradição. A fala é diferente, mas a essência é a mesma. Inclusive, tivemos um professor de alguns cursos de budismo tibetano que fizemos lá em Dharamsala, de quem certamente falaremos em algum texto futuro, que certa vez nos disse que gostava da mentalidade empregada nos votos do Zen.
Ele explicou que acreditava que o Zen utilizava propositalmente uma linguagem contraditória para apontar o tamanho do desafio e para convidar à ação imediata, cortando a reflexão excessiva e supérflua. Sabemos que os seres são inumeráveis, e ainda assim, ao nos colocarmos no caminho do bodhisattva, nos comprometemos a libertá-los todos; as delusões mentais são inexauríveis, mas isso não nos impede de fazer votos de extinguir cada uma delas; os portais do Dharma são incontáveis, mas nos mantemos determinados a atravessá-los um a um; o caminho de Buddha é inalcançável, entretanto, iremos infinitamente percorrê-lo.
Eu e Tamara sentimos que os votos repetidos diariamente, de forma não mecânica, são essenciais, pois nos direcionam ao que realmente é relevante na vida, servindo como um eixo ao redor do qual tomaremos decisões e agiremos. A ação é muito importante, a prática é o próprio caminho, não devemos perder tempo.
Lama Zopa Rinpoche disse que precisamos ser gratos por termos nos manifestado em uma vida humana e por termos tido a oportunidade de ter entrado em contato com o Dharma de Buddha, “mas, é claro, essa incrível oportunidade não vai durar muito. É como um relâmpago em uma noite escura que por um período muito curto de tempo revela claramente tudo e então se vai” (ZOPA, Lama. 2012, p. 32). Por isso, deveríamos desistir de “esticar nossas pernas” (Ibid, p. 73), o que segundo o Lama significa que é preciso abrir mão do apego aos prazeres fáceis da vida e deixar de lado a acomodação que nos afasta da prática diligente do Dharma.
Mas essa é justamente a beleza do caminho, é preciso estar completamente presente, não é algo que se faz perifericamente. Ou nos entregamos ao processo ou ele simplesmente não existe. Como disse o monge Genshô, “não basta repetir ‘os seres são inumeráveis, faço voto de libertá-los todos.’ Só repetir não é nada. Você tem que pensar o que significa esse voto. Porque são votos paradoxais, uma vez que eles, por sua própria natureza, são impossíveis, e não se faz votos impossíveis. Esse é o voto do Bodhisattva – fazer votos impossíveis.”[8]
Texto de:
Tamara Carneiro, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.
Thomás Rosa, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.
Referências:
Diferentes Caminhos para o Fim do Sofrimento – https://www.budismohoje.org.br/diferentes-caminhos-para-o-fim-do-sofrimento/
GENSHÔ, Monge. Os dez passos do boi. – http://www.daissen.org.br/os-dez-passos-do-boi-monge-gensho/
_______________. Votos do Bodhisattva. – https://www.daissen.org.br/votos-do-bodhisattva/
KHEMADHAMMA, Ajahn. Ven. Ajahn Chah: An Appreciation & Personal Recollection. – https://foresthermitage.org.uk/ven-ajahn-chah/
LAMA, Dalai. The Path to Freedom: Freedom in Exile – The Autobiography of Dalai Lama. Abacus, 2002.
ROMMELUERE, Éric. “Les bouddhas naissent dans le feu”. Éditions du Seuil, 2007.
ZOPA, Lama. Bodhisattva Attitude: How to Dedicate Your Life to Others. Lama Yeshe Wisdom Archive, 2012.
[1] Moeda tailandesa.
[2] O famoso texto Zen “Os dez passos do boi”, no qual o boi simboliza a mente, é explicado pelo Monge Genshô em https://www.daissen.org.br/os-dez-passos-do-boi-monge-gensho/
[3] Versos do Guia do Estilo de Vida Bodhisattva, de Shantideva
[4] A palavra tsampa em tibetano geralmente se refere à farinha de cevada torrada e moída, embora ocasionalmente a farinha venha de trigo ou outro grão.
[5] Falamos um pouco sobre nossa experiência com Thonglen em: https://www.budismohoje.org.br/diferentes-caminhos-para-o-fim-do-sofrimento/
[6] KHEMADHAMMA, Ajahn. Ven. Ajahn Chah: An Appreciation & Personal Recollection. – https://foresthermitage.org.uk/ven-ajahn-chah/
[7] Malas são rosários, geralmente de 108 contas, usados pelos budistas tibetanos para manter a contagem da recitação de mantras.
[8] GENSHÔ, Monge. Votos do Bodhisattva. https://www.daissen.org.br/votos-do-bodhisattva/