Dimensão Histórica: a Ilusão Tão Real que Gera Traumas

 

Massa e carga não existem por si mesmas; elas somente existem como parte da narrativa que nós, seres humanos, construímos para descrever o mundo natural” Marcelo Gleiser, físico teórico professor da Universidade de Dartmouth

 

Existe uma nova ciência surgindo no século XXI que pode significar uma enorme mudança na nossa forma de ver a Vida. “No século XX acreditava-se que os eventos ocorriam no espaço e no tempo e eram consideradas locais e separáveis. Este novo paradigma do século XXI reconhece que há uma dimensão mais profunda além do espaço-tempo, e que a conexão, a coerência e a ‘coevolução’ que observamos no mundo manifesto estão codificadas no domínio integral dessa dimensão mais profunda”. Essa visão aponta não para um mundo fragmentado, mas sim para uma existência integral onde coisas que ocorrem em um lugar e um tempo, ocorrem em todos os lugares e todos os tempos. O conceito de campo pode dar legitimidade científica a essa compreensão, mas os campos não são observáveis e somente seus efeitos podem ser medidos e observados. Em 2013 o astrônomo e físico Craig Hogan, da Universidade de Chicago, sugeriu que a realidade manifestada captada por nossos sentidos é na verdade um holograma, teoria que mais tarde recebeu a adesão do japonês Yoshifumi Hyakutake.

Essa nova ciência é nova apenas para os cientistas do século XXI, pois Platão e Pitágoras falavam da existência de uma dimensão oculta, que Platão chamava de Mundo das Ideias e da Formas e Pitágoras de Cosmos, uma totalidade “transfísica”, sem rupturas. Na filosofia hindu a realidade profunda é a dimensão causal que origina os fenômenos grosseiros e que percebemos com nossos sentidos sendo, portanto, ilusórios e efêmeros. Giordano Bruno, no século XVI falou de uma dimensão profunda que, segundo ele, era preenchida por uma substância invisível chamada aether. O Samkya, um dos mais antigos ensinamentos filosóficos da Índia diz que há um plano não físico da realidade que conserva os conhecimentos e informações de todas as eras; os Registros Akáshicos. O mundo que experimentamos não é, portanto, a realidade, mas somente uma manifestação desta realidade.

Como podemos perceber as tradições milenares e a nova visão cientifica estão se alinhando nas formas de perceber a realidade e a ideia de que a consciência pertence a uma dimensão além do mundo visível também vem sendo reconhecida como verdadeira. O Físico Erwin Schrödinger disse que “O número total de mentes é apenas um…Na verdade existe apenas uma mente”. Jung pensava de forma semelhante ao afirmar que “A psique não é um produto do cérebro e não está localizada dentro do crânio; ela é parte do princípio gerador criativo do Cosmos”.

No Budismo existe o conceito de Dimensão Suprema e Dimensão Histórica, onde a segunda é este campo onde nossos sentidos alcançam, esta realidade onde as coisas nascem e morrem, onde existe o dentro e o fora, o dia e a noite, sujeito e objeto. Esta realidade criada pela mente, cria também a ilusão de um Eu, uma identidade que diz para si mesmo “Eu existo”. Esta identidade crê piamente que esse sonho engendrado é real e por isso teme sua extinção, sua morte. Acreditamos que somos apenas esse saco de ossos, pele e nervos que nasce, envelhece, adoece e morre. Nossa experiência cotidiana é dominada pelos cinco sentidos e, não faz muito tempo, a ciência e muitos de nós acreditávamos que essas informações eram as únicas que recebíamos e que, portanto, essa era a única realidade possível. Mas em 2011 o neurofisiologista Stuart Hameroff e o físico Roger Penrose propuseram a existência de sofisticadas redes subneurais do cérebro constituídas de proteínas do citoesqueleto e organizadas em micro túbulos. Essas redes estendem a capacidade de percepção e processamento das informações do cérebro até o nível básico do universo, o nível quântico.  Mas por que não percebemos essas informações? O que acontece é que nossa percepção é seletiva e cada receptor atende a uma frequência determinada e como estamos condicionados pela mente desde tempo sem conta, temos dificuldades para reconhecer padrões não familiares. A boa notícia é que existem formas de acessar essa Dimensão Suprema por meio de movimentos rítmicos, contemplação da natureza, poesia, orações, arte e para nós zen budistas; o zazen.

Mas acontece que, nós seres humanos normais, temos que lidar mesmo é com a Dimensão Histórica, a Dimensão Suprema está acessível apenas para os despertos, para os que tiveram alguma experiência mística, algum insight. E na Dimensão histórica temos chefes, filhos, esposas, maridos, vizinhos, pais, depressão, ansiedade, políticos e toda uma gama de distrações e provocações possíveis dentro de uma realidade que cremos como verdadeira. A solução para esses problemas não está fora de nós, só há uma maneira de lidar com isso e é olhar para dentro. Não são as situações que nos incomodam, somos nós que nos incomodamos com as situações e mais que isso, nós somos o outro dos outros. Portanto, antes de apontarmos o dedo para reclamar desta ou daquela pessoa, devemos nos lembrar que estamos no mundo da mesma forma e podemos criar para os outros as mesmas situações que nos constrangem a vida. Na verdade criamos, quer saibamos disso ou não. Esse é um ponto importante. Outro contexto a ser examinado é que cada pessoa tem sua carga de experiências vividas, cada indivíduo carrega consigo um encadeamento de acontecimentos que vai moldando através do tempo a sua personalidade e, em vista disso, cada um reage de forma diferente em cada evento da vida, mais que isso, podemos reagir de maneiras diferentes a eventos muito semelhantes, basta para isso que nossa mente no determinado momento esteja diferente.

Olhar para dentro não é tarefa fácil e pode haver grande sofrimento, porém o resultado, quando o caminho é percorrido com sinceridade, é a libertação. Inspecionar nossa mente nos leva para um único responsável por todos os infortúnios que ocorrem em nossas vidas; nós mesmos. Se faz necessária uma grande mudança na nossa forma de olhar para o mundo e para os relacionamentos, como disse Schrödinger, não existem consciências, existe apenas uma única consciência, sendo assim, não é nem que exista uma interdependência, pois não existe um outro ao qual se ligar e se interconectar, existe apenas uma unidade e nesta singularidade o que afeta um ser, afeta o todo.

Não existem inocentes nessa viagem. Não somos seres honestos, sinceros e bonzinhos que caíram de paraquedas num mundo de manifestações más, corruptas e pecadoras. Estamos todos aqui pelos mesmos motivos, somos atraídos pelos mesmos desejos, apegos, aversões, amores e paixões que atraíram as centenas de milhares de outras vidas e quando nos tornarmos cônscios desse cenário será mais fácil realizar o entendimento de que nosso chefe, nossa esposa ou marido, nossos filhos, nossos vizinhos, nossos pais, nossos amigos ou inimigos somos nós mesmos, somos a mesma e única consciência tendo uma experiência de identidade diferente da nossa e em essência não estamos separados e tudo que fizermos a eles nos afetará.

A melhor metáfora para isso é o das ondas no mar. Quando olhamos para a superfície do mar vemos as ondas viajando de um lado para outro e chegando na areia das praias ou nas encostas, no entanto, o movimento das ondas é uma ilusão, elas não são o que parecem, pois, as moléculas de água movem-se apenas para cima e para baixo, não se movem de um lugar para o outro junto com as ondas. Apenas as ondas viajam de ou lado para o outro, o mar está sempre ali e é sempre o mesmo. Nós somos as ondas o oceano é a Dimensão Suprema.

Perambular pela Dimensão Suprema exige muito esforço, temos que vigiar todo o tempo nossos pensamentos, nossas ações e palavras. A convivência com outras pessoas é um grande exercício, é colocar a prova nosso treinamento para verificarmos se somos capazes de controlar nossas más tendências, nossa aversão e nossa raiva, se somos verdadeiramente senhores de nossas mentes. Devemos considerar todos os momentos como oportunidades de treinamento e todos os seres como nossos mestres, sendo assim, um praticante do caminho espiritual nunca tira férias. Ainda que não consigamos manifestar as qualidades que admiramos e que nos fariam calar e sermos resilientes, penso que podemos pelo menos almejar por elas, não somente para nós. Ainda que sintamos mais pena que compaixão, devemos reconhecer isso sem julgar e desejar que ela um dia surja, não somente para nós.

 

Texto de Monge Chudô, Monge zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

Bibliografia:

A Plenitude do Cosmos, Editora Cultrix – Ervin Laszlo

 

Pin It on Pinterest

Share This