Quem possui certa estima pela Filosofia e pelo Budismo, em dado momento, deve ter se deparado com as semelhanças de conceitos propostos pelo filósofo Friedrich W. Nietzsche, aos do Budismo, e provavelmente levado uma “martelada filosófica”, ou quem sabe, um “tapão Zen”, pois o Zen Budismo é uma das vertentes budistas mais árduas de serem seguidas, apresentando-nos como método único para o despertar, o zazen (meditação sentada) sem elucubrações ou mantras, apenas koans que servem de respaldos à prática.
Da mesma maneira, pode-se dizer que Nietzsche foi mestre por excelência em desconstruir crenças, vide, por exemplo, a frase “Deus está morto”, negando por via das dúvidas a existência de uma deidade, e pondo em nossas mãos a responsabilidade pelo o que fazemos. Não caracterizando uma filosofia palatável de ser digerida, tampouco, de fácil compreensão; sendo Nietzsche um pensador que afirmava a vida, e evitava, sobretudo, qualquer opioide que tolhesse a lucidez da existência como ela de fato é, suspeitando dos “valores absolutos” aceitos de forma peremptória pela grande maioria.
O Budismo, por sua vez, não desconstrói crenças, mas nos ensina com diligência acerca de nosso papel no mundo, e assim como Nietzsche, a responsabilidade é posta em nossas ações, numa relação direta de causa e efeito, a qual chamamos de karma, que em sua literalidade significa “ação”. Não reconhecendo, assim, com a ideia de um deus criador que engendra mandamentos, beneficiando-nos, ou punindo-nos, quando há o descumprimento de seus critérios. A ética no Budismo se dá justamente por não haver prêmios, com paraísos ou salvação, sendo as ações um fim em si mesmo, evitando o sofrimento de todos os seres, a partir da compreensão sobre interdependência e não-eu (anatta), atestando-se que o sofrimento de um, pressupõe o de todos.
Tais considerações são de suma importância à compreensão do momento posterior ao qual Nietzsche anuncia a morte de uma potestade, e consequentemente os valores religiosos intrínsecos a ela, pois haveria um estado de vazio existencial (niilismo) que poderia ser danoso para nós, haja vista, que se nada é predestinado por uma deidade, ficaríamos à deriva, e a vida nada mais seria do que um intervalo de tempo que se esmorece com a morte. Sendo assim, o filósofo alemão engendrou ferramentas do pensar salutares para rechaçar o niilismo, tais como a do “Eterno Retorno” encontrado na sua brilhante obra “A Gaia
Ciência”, logo no final do século XIX, que nos é apresentada com o seguinte questionamento:
“E se um dia ou uma noite, um demônio se introduzisse na tua suprema solidão e te dissesse: “Esta existência, tal como a levas e levaste até aqui, vai-te ser necessário recomeçá-la sem cessar, sem nada de novo, ao contrário, a menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida voltará ainda repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande ou pequeno, tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão, esta aranha também voltará a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!”… Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando este demônio que te falasses assim? Ou já vivestes um instante prodigioso, e então lhe responderias: “Tu és um deus; nunca ouvi palavras tão divinas!” Caso este pensamento te dominasse, talvez te transformasse e talvez te aniquilasse; perguntarias: a propósito de tudo e de cada coisa: “Queres isto outra vez e por repetidas vezes, até o infinito?”. E pesaria sobre tuas ações com um peso decisivo e terrível! Ou então, como seria necessário que amasse a ti mesmo e que amasse a vida para nunca mais desejar nada além dessa suprema confirmação!” (NIETZSCHE, 2014, p. 179)
Neste diapasão, Nietzsche lança a tal provocação ao leitor, no intento de fazê-lo questionar-se sobre o modo ao qual ele está encarando a sua existência; exortando-o para uma afirmação da vida, de que os momentos devem ser desfrutados, sejam eles agradáveis ou não, e aceitá-los categoricamente. Conjectura-se, portanto, que o filósofo aderiu ao conceito de karma, encontrado no Budismo, mormente quando refere-se aos momentos que hão de repetir-se pela eternidade, infindáveis vezes. Apesar das semelhanças com ensinamentos de Shakyamuni Buddha, há importantes diferenças que devem ser elucidadas.
O karma, segundo o Budismo, compreende-se numa onda de energia que expressa continuidade da vida, não havendo uma partícula permanente que sobreviva à morte, ou conceitos de “alma” que pressupõe em um “eu” que entra em novos corpos, revivendo, amiúde, todos os momentos. Destarte, essas ondas de energia se perpetuam no universo, sob a égide do entendimento de que todo efeito tem uma causa pregressa, como salienta Monge Genshō:
“O karma também é continuidade. Isto é, somos efeitos de causas pregressas e nada deixa de ter uma causa anterior. Por isso sempre temos que nos perguntar onde está a causa do efeito que vivemos, pois qualquer que seja ele, nós o construímos de alguma forma. Sabendo disso, em última análise, entenderemos que nada acontece que nós não mereçamos. Porque caminhamos sobre o chão que nós mesmos construímos, assim como construímos nosso futuro com ações do presente.” (GENSHŌ, 2020, p. 60)
Como analisado, o karma ensinado pelo Budismo, se diverge do “Eterno Retorno” proposto por Nietzsche, de que reviveríamos estoicamente os mesmos momentos sucessivas vezes, sem a chance de modificá-los. O Budismo, de antemão, nos esclarece na Primeira Nobre Verdade de que a vida é dukkha, ou seja, cíclica, e está sempre em constante mudança, não havendo um engessamento de momentos, sentimentos e fatores que interrompa o fluxo das coisas. Servindo-nos de motivação para a possibilidade de alterar as marcas kármicas que herdamos de vidas pretéritas, não nos colocando numa viela a qual estamos subjugados a reviver tudo fatidicamente, assim como Sísifo.
Texto de José Soares. Praticante da Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Fonte:
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. 2ª Edição. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda., 2014.
GENSHŌ, Monge. O Caminho Ze