Não sei muito sobre as plantas para dizer a verdade, mas sei indubitavelmente que onde há plantas eu me sinto melhor. Sempre foi assim, desde que me lembro. Cresci em uma cidadezinha cercada por uma exuberante floresta, na beira de um grande rio da Amazônia. Passava várias das minhas tardes perambulando por trilhas na mata e banhando-me nos igarapés. Em casa também havia muitas plantas. Meu pai é um excelente jardineiro, sou grato pelo cuidado e esmero que ele tinha e tem até hoje com o quintal de nossa casa, e que me possibilitaram momentos agradáveis durante minha infância e adolescência em meio às samambaias e orquídeas pelas quais ele é apaixonado. Desde que saí de casa para estudar e ter minha própria vida, o jardim de meu pai têm sido um espaço de descanso e cura, onde encontro tranquilidade e afeto sempre que preciso. Hoje compreendo também, observando as dificuldades emocionais e os problemas psicológicos com os quais meu pai lida diariamente, que as plantas cuidam tanto dele quanto ele cuida delas. Mas essa é apenas uma das muitas lições que se pode aprender ao prestar atenção às plantas.
A vontade de estar perto das plantas e a relação afetiva com elas levaram-me a estudá-las. Não me bastava estar perto fisicamente, mas também desenvolvi um desejo de aproximar-me intelectualmente e de aprender com elas. Desde o início de minha carreira como pesquisador dedico-me a tentar entender seus modos de vida e suas relações, a partir dos sistemas de conhecimento e concepções de mundo de diferentes grupos humanos e sociedades. Recentemente, desde que iniciei minha prática no Budismo, as plantas têm se revelado também boas amigas e professoras, venho percebendo que me relacionar com elas e conhecê-las pode ser uma grande ajuda ao se trilhar o Caminho. Gostaria de escrever aqui um pouco do que tive contato em minhas pesquisas e algumas conexões com o que venho aprendendo dentro da prática do Budismo.
Arrisco começar dizendo que as plantas incorporam, ao menos à primeira vista, um tipo bem radical de alteridade: para além da diferença óbvia no que diz respeito à sua morfologia e estrutura fisiológica, plantas vivem em uma temporalidade muito distinta da dos humanos e de outros animais, tornando difícil acompanharmos os seus ritmos e dando muitas vezes a impressão de que não se movem; plantas não emitem sons em frequências que podem ser facilmente captadas, mesmo com a ajuda de aparelhos; em suma, plantas ficam paradas, aparentemente sem fazer nada, nem nenhum barulho. Seus complexos modos de vida são frequentemente subestimados e comumente são tidas como meros autômatos nas narrativas científicas mais convencionais e por muitos daqueles cujos afazeres da vida não lhes permitem um envolvimento mais íntimo com elas. Eu mesmo, por muito tempo, apreciei as plantas apenas por suas qualidades paisagísticas, até ter contato com certas leituras que foram me apresentando um outro olhar sobre elas.
Desde o final dos anos de 1980, uma parte da literatura antropológica sobre os povos indígenas da Amazônia vem revelando que as plantas, em diversos contextos etnográficos, são dotadas de uma interioridade que lhes concede capacidades e habilidades de agir no mundo como verdadeiros sujeitos: participam, por exemplo, das relações de afinidade e consanguinidade com os grupos humanos, mas são também, em muitos casos, seres altamente perigosos, com as quais os humanos devem negociar com muito cuidado. Entender os relacionamentos entre plantas e pessoas em outras culturas a partir dessa perspectiva permite-nos vislumbrar que, apesar das limitações que nossa percepção casual da vida das plantas eventualmente impõe ao reconhecimento de suas “agencialidades”, nosso ponto de vista não é universal, uma vez que nas ontologias e cosmologias de vários grupos indígenas da Amazônia, as plantas levam vidas bastante agitadas, não muito diferentes das nossas.
Além disso, podemos observar que nos últimos anos cresce a atenção para o mundo vegetal. Biólogos, filósofos, antropólogos, escritores de ciência e diversos pensadores estão se distanciando dos paradigmas mecanicistas e deterministas, e com uma sensibilidade sem igual, estão pensando com e por meio das plantas, reconhecendo suas capacidades cognitivas, estabelecendo conexões entre seus modos de ser e estar no mundo e as múltiplas dimensões da vida humana, apontando o grande potencial de aprendizado pessoal, social, cultural e político de prestarmos seriamente atenção a esses organismos.
A antropóloga Natasha Myers, por exemplo, a partir de uma série de diálogos com pesquisadores que estudam plantas, percebeu uma operação fundamental na maneira que estes cientistas se aproximam das plantas para entendê-las e que é frequentemente obliterada no momento de escrever os resultados da pesquisa e publicar os artigos. Trata-se do recurso ao antropomorfismo, ou seja, a atribuição de características e intenções humanas aos outros seres. De modo resumido, o mais interessante nisso é que Myers percebe que no enredamento entre cientistas e plantas durante a pesquisa, e nas tentativas de imaginar, dar sentido e entender os processos que ocorrem com as plantas, o inverso também é verdadeiro: utilizando seus próprios corpos e mentes para envolver-se com os comportamentos, ritmos e temporalidades das plantas, eles mesmo se “fitomorfizam! ”. A conclusão que a autora chegou a partir de suas observações é que o conhecimento só é mesmo possível a partir da troca de perspectivas e do estabelecimento de uma relação íntima com aquilo que se estuda.
Nesse mesmo sentido, Craig Holdrege, em seu livro “Thinking like a plant”, incita-nos a buscar nas plantas, na sua plasticidade, resiliência, forma de organização e relação com o ambiente, um modelo ético e de pensamento para nos relacionar melhor com nossos próprios sentimentos e emoções e também para conectar-nos às outras pessoas e construir relações mais positivas, sinceras e saudáveis.
Também a título de exemplo, não poderia deixar de fora o pensamento realmente revolucionário de Stefano Mancuso. Em um de seus últimos livros, “A revolução das plantas”, no qual propõe nada menos do que uma “vegetalização” da Ciência e da Tecnologia, mostrando diversas aplicações tecnológicas possíveis inspiradas nas formas de organização das plantas e em suas maneiras de se comportar no ambiente, apontando para uma prática científica voltada para objetivos mais sustentáveis.
Essa convergência entre diferentes tipos de conhecimento em direção a um mesmo entendimento sobre as plantas não me parece algo trivial. Embora haja muito o que se pensar e estudar sobre isto, eu gostaria de apoiar-me nesse preâmbulo para tentar estabelecer aqui algumas breves correlações entre a maneira como a vida das plantas vem sendo entendida e a visão de mundo budista.
“A vida das plantas” é justamente o título do livro do filósofo italiano Emanuele Coccia, no qual as plantas são colocadas no centro de toda a metafísica do nosso planeta. Coccia nos felicita com a seguinte reflexão:
“A vida vegetal é a vida enquanto exposição integral, em continuidade absoluta e em comunhão global com o ambiente. (…) O mundo é, para a grande maioria dos organismos, o produto da vida vegetal, o produto da colonização do planeta pelas plantas, desde tempos imemoriais. (…) [a chegada das plantas na] terra firme e sua multiplicação permitiram produzir a quantidade de matéria e de massa orgânica de que a vida superior se compõe e se alimenta, mas também, e sobretudo, elas transformaram para sempre o rosto do nosso planeta: foi através da fotossíntese que nossa atmosfera passou a ter mais oxigênio; é ainda graças às plantas e a sua vida que os organismos animais superiores podem produzir a energia necessária a sua sobrevivência, por e através delas que nosso planeta produz sua atmosfera e faz respirar os seres que cobrem sua pele. A vida das plantas é uma cosmogonia em ato, a gênese constante do nosso cosmos” (Coccia, 2018, p.13-16)
Trouxe essa pequena amostra do fascinante livro de Coccia, porque a meu ver, dois aspectos da vida das plantas descritos pelo autor fornecem um eixo em torno do qual os diferentes conhecimentos sobre as plantas, que mencionei ainda há pouco, podem ser articulados com conceitos fundamentais no Budismo. O primeiro aspecto é o papel das plantas como mediadores das diferentes camadas do cosmos. Na metafísica do ocidente, por assim dizer, isso pode ser entendido como a capacidade não apenas de mediar a relações entre a energia solar, a vida orgânica e a atmosfera do planeta, mas de gerar as próprias relações entre essas camadas e o mundo possível em que a vida passa a existir; O segundo aspecto é a total imersão das plantas em seu ambiente, tornando-as completamente inseparáveis deste. Nesse sentido, o corpo das plantas e o ambiente em que vivem são compreendidos como sendo uma coisa só. Da maneira que pude compreender até o momento em minha prática de iniciante, estes aspectos podem oferecer um paralelo para refletirmos sobre o imbricamento e a correlação entre as três marcas da existência ensinadas no Budismo.
Anatta é uma das três marcas da existência e significa literalmente “não-eu”. Na perspectiva do Budismo, “não-eu” significa que não apenas não existe um “Eu” inerente, no sentido de nossa pessoa ou personalidade, mas também que não existe nenhuma essência, princípio vital inexaurível ou ainda uma alma eterna que persiste após a morte de nosso corpo. Essa noção é válida tanto para nós seres humanos como para qualquer outro ser, coisa ou fenômeno no universo (ou multiverso, se preferir), ou seja, são todos vazios de um “Eu” inerente. Porém, ao afirmar que o “Eu”, os seres, as coisas e os fenômenos são vazios, não se está querendo dizer que elas não existam propriamente, que o mundo fenomenológico tal qual o conhecemos é destituído de realidade, completamente etéreo e impalpável, o que seria um absurdo, já que todos nós sentimos, percebemos e interagimos de diversas maneiras com a multiplicidade de seres e de coisas no nosso dia a dia e ao longo de nossas vidas.
Então o que se quer dizer com isto? Quer dizer que todas as coisas são compostas, interdependentes e possuem uma existência condicionada. Nosso corpo, por exemplo, é composto de trilhões de células, e essas mesmas células são compostas de estruturas e organelas, que por sua vez são compostas de cadeias de moléculas, que são compostas de átomos, que são compostos de partículas – e cada vez os físicos vão encontrando partículas mais “elementares”, até chegarmos na incomensurável e caótica sopa quântica onde todas as probabilidades ocorrem e afetam umas às outras simultaneamente, a potência cósmica do devir em sua máxima expressão. Assim como nosso corpo, os corpos dos outros seres, os objetos ao nosso redor e os fenômenos como o vento, as nuvens, e mesmo a luz são compostos, podem ser vistos como uma reunião de elementos, que se condensam e manifestam-se por um certo período em um determinado lugar do espaço. Tudo participa de um fluxo, o universo está sempre em constante movimento e mudança, ganhando expressão na multiplicidade de seres e coisas que se manifestam a partir da infinitude de ciclos de existência interconectados. Assim, quando se diz que as coisas são vazias de um “Eu” inerente, se está dizendo simplesmente que nada possui uma existência independente.
A ideia de Anatta articula-se com as outras duas marcas da existência ensinadas por Buddha, a impermanência – Anicca e a insatisfatoriedade – Dukkha. Na medida em que todas as coisas são compostas, interdependentes e possuem uma existência condicionada, quando desaparecem as condições que permitem a um determinado ser, coisa ou fenômeno se manifestar, os elementos e agregados de que são compostos se dispersam novamente para posteriormente se reunirem, condensarem e manifestarem-se sob outras formas. Tudo, nesse sentido, está sujeito a deterioração e tem uma existência apenas temporária e, de um certo ponto de vista, fugaz – até mesmo as montanhas, o oceano, a Grande Terra e o Universo dispersar-se-ão e desintegrar-se-ão eventualmente. Isso é Anicca, a impermanência. É exatamente assim que funciona para a nossa mente comum e para os processos mentais que acreditamos ser o nosso “Eu”. Somos apenas reuniões de elementos e condições que se manifestam por meio de ondas kármicas. Quando morremos, ou desta perspectiva, quando nos dispersamos e desintegramos, nosso karma continua e manifesta em uma forma diferente ao encontrar, reunir e condensar novos elementos e condições. Aqui, karma significa ação, toda ação é precedida de uma causa e produz um efeito. O conjunto de todos esses relacionamentos de causa e efeito produzidos ao longo do tempo em todo o universo configuram a lei do karma, e é o que move a roda da existência, perpetuando os infinitos ciclos de nascimento e morte.
Considerando o que foi exposto até aqui, parece-me que as plantas não precisam se esforçar muito para ter uma compreensão correta de como o universo funciona. Seja na qualidade de mediadoras do cosmos, assim como na unicidade com o ambiente que naturalmente realizam através de suas vidas, de modo totalmente espontâneo e direto elas experimentam o mundo e revelam-se a nós como uma forma incorporada dessa dinâmica apresentada pelos ensinamentos budistas. Nós também somos exatamente como as plantas, isto é, expressões de uma mesma dinâmica de mundo, mas não nos damos conta, ou frequentemente esquecemos disso. É por meio da atribuição de sentido e significado ao encadeamento dos processos de interação com o ambiente ao nosso redor, mediados pelos cinco agregados – contato, sensação, percepção, formações mentais e consciência, que se cria tanto a ilusão de que o nosso “Eu” é separado das demais coisas, como a de que estas são separadas umas das outras, constituindo unidades discretas – fundamentalmente separando aquele que percebe daquilo que é percebido. É porque temos memória, com aponta o Sensei Genshô, que nosso “Eu” pode concatenar e dar sentido à nossa experiência no mundo e aos processos que levam aos nossos momentos de consciência.
Para utilizar uma metáfora aproximada, entendo que é como se o “Eu” fosse um fio que utilizamos para ligar, costurar ou amarrar esses sucessivos momentos de consciência que experimentamos em uma trama linear e consistente. No entanto, estamos sempre perdendo a ponta desse fio e incessantemente tentando recuperá-la. Isso causa-nos muitos tipos de sofrimento, principalmente oriundos do apego às imagens que criamos de nós mesmos, como insegurança, ansiedade e perplexidade diante das inúmeras contradições geradas. Isso é um aspecto importante de Dukkha. Em sua arbitrariedade, o “Eu”, ou o fio na metáfora utilizada, não pode cumprir a função de abarcar a imensidão do nosso verdadeiro ser.
Os autores citados brevemente ao longo deste texto sugerem que olhar atentamente para as plantas, acompanhar seus ritmos e prestar atenção em seus modos de estar e agir no mundo, pode ensinar-nos sobre a natureza do próprio conhecimento, fazer-nos pensar sobre nossas relações com o mundo e em sociedade, e inspirar tecnologias mais sustentáveis. Talvez também possamos aprender sobre o Dharma observando cuidadosamente e relacionando-nos com as plantas. Em seus modos de ser e experimentar diretamente a realidade do mundo, em suas recusas em manifestar uma individualidade intrínseca, na espontaneidade com que vivem em união com o universo, podemos ver nossa verdadeira natureza atuando aqui e agora.
Texto de Guilherme Henriques Soares. Antropólogo. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen
Referências bibliográficas
Coccia, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Cultura e Barbarie, 160p., 2018.
Holdrege, Craig. Thinking like a plant: a living science for life. Lindisfarne Books, 2013.
Mancuso, Stefano. Revolução das Plantas: um novo modelo para o futuro. Ubu Editora, 178p., 2019
Myers, Natasha. Conversations on Plant Sensing: Notes from the Field. Natureculture, p.35–66, 2015.