Ao longo da minha modesta experiência com o Zen, ouvi coisas que realmente me pareciam profundamente herméticas para minha compreensão. Às vezes o Zen é absurdamente direto e simples, mas compreender plenamente, captar a realidade profunda do que está sendo ensinado é um desafio que nos denuncia nossa cegueira e limitação para compreensão das verdades transmitidas pelos Mestres. Alguns ensinamentos, repetidos exaustivamente, simplesmente não conseguimos compreender, embora aparentemente óbvios.
Pondo em palavras a minha experiência, refiro-me a um Sesshin de inverno em Florianópolis, onde passei por uma experiência muito interessante. Daquelas que estão na contramão das dificuldades citadas acima e relaciona-se à citação Zen que afirma: “Corpo e mente são um só!”. Quão bonito é esse ensinamento! Sim, mente e corpo são um só, rompe-se o dualismo cartesiano clássico. Eu mesmo já repeti esse ensinamento para mim e para outras pessoas diversas vezes.
Em uma cena do filme “Zen”, que conta a história do mestre Dogen Zenji (fundador da Escola Zen), o Mestre diz algo como “corpo e mente caíram”. Eu me perguntava: a mente cair deve ser um estado de concentração profunda, mas se o corpo cair, como é isso? Para a mente era fácil imaginar, pois entendia que era algo de natureza sutil e os pensamentos eram uma criação nossa, mas o corpo? E foi apenas praticando que pude entender melhor do que se tratava esse assunto.
No meu primeiro Seshin, experimentei algo durante o Zazen bem diferente. Eu chamo de “encaixe”. A melhor analogia que me ocorre é a de um rádio antigo, como se tentássemos sintonizar seus botões de frequência e, de repente, o som fica claro. Nessa experiência vivenciada, Corpo e mente estavam CONFORTAVELMENTE alinhados, sintonizados. Instantaneamente, surgiu-me o seguinte pensamento: “desse jeito aqui consigo meditar por horas”. Mas como num passe de mágica “perdi” a sintonia, e meu corpo e minha mente se desalinharam. Fiquei com a memória daquela experiência na minha mente, mas não sabia como replicá-la e nem a natureza daquele fenômeno. Notei que eu não dominava aquela arte, mas as coisas mudaram a partir daquela experiência
Eu estava consciente da oportunidade de prática intensa, oportunidade essa, rara para minha rotina. Tinha menos interesse na beleza das nuvens, apreciando mais o céu azul vasto e infinito. Em outras palavras, estava determinado a não ficar dando atenção às coisas belas típicas da estética do Zen que presenciamos no Seshin, e sim focar em minha prática de Zazen em si. Porém, nos primeiros dois dias, o inevitável: uma mente barulhenta, um corpo incomodado, tédio, e uma insistente “varredura” da minha vida pessoal, principalmente no campo profissional, aparecendo em uma sequência de pensamentos sem fim. Porém a prática é generosa, e se você se dedicar de verdade os frutos de repente aparecem. Foi isso que ocorreu.
O Seshin é habitualmente composto por 40 min de Zazen, seguido de 10 min de Kihin (meditação em caminhada), e mais 40 min de Zazen. Ir ao banheiro após os primeiros quarenta minutos, todavia virou hábito! Zazen, banheiro, Kihin e Zazen. Porém, no final do segundo dia comecei a observar que alguns praticantes, tampouco se levantavam para fazer Kihin, e isso me deixou incomodado! Como era possível aquela proeza?
Foi então que algo diferente ocorreu. Na penúltima prática do segundo dia, senti aquele estado de alinhamento de corpo e mente outra vez. Porém, desta vez percebi nitidamente algo que me chamou atenção: meu corpo estava imóvel e confortável. Notei que havia uma ligação entre aquele estado de tranquilidade e a imobilidade do meu corpo. Pensei assim “vou tentar sustentar essa experiência”. Tive certo sucesso em manter aquela posição, uma vez que entendi o papel da imobilidade do corpo no processo. Mas a mente ficou meio inquieta, mesmo com o corpo imóvel, pois eu estava empolgado com aquela descoberta e não conseguia parar de pensar no assunto!
No dia seguinte e até o último dia, passei a ter uma “âncora” para minha prática: sentar-me de forma firme e relaxada e imobilizei meu corpo. Sem me coçar nem mexer, nem nada. E assim o fiz! Imobilizei meu corpo e relaxei na postura, sem mesmo me deixar levar pela empolgação anterior. Assim, comecei a ter períodos de concentração com maior profundidade. Porém um fato me permitiu “medir” o avanço que aquela experiência significou para mim. Após uma das práticas, eu estava tão absorvido e confortável que ao tocar o sino indicando a finalização, pensei “poxa porque vai acabar?”. Foi daí que me ocorreu: “mas não precisa acabar, basta eu não sair para o Kihin e continuar”. Me veio um medo, um pânico, um temor de sentir vontade de ir ao banheiro, das pernas adormecerem, de sentir uma dor insuportável nas costas e de passar vergonha. Pensava no julgamento dos outros, como “nossa que arrogante, tentou ficar sem fazer Kihin e agora não sustentou sua ousadia”. Que bobo! Ninguém nem notava a minha existência ali, era meu ego medroso, só isso.
Foi então que me lembrei de uma experiência que vivenciei em uma aula de natação. O instrutor me dizia que minha mente me impedia de nadar mais do que eu nadava até então. Eu só conseguia nadar 50 metros, 25 de ida e 25 de volta. Certo dia, quando estava relaxado e tranquilo, decidi arriscar nadar 75 metros e para minha surpresa, nadei 150 metros sem parar!
Decidir fazer o mesmo e segurar a posição até o fim da segunda sessão de Zazen, o que seria um total de 90 minutos. O resultado foi que consegui ficar sentado imóvel e relaxado por todo tempo. Fiquei feliz não pela contagem do tempo, mas por ter sentido o nível de concentração bem mais profundo do que tinha sentido até então. Era como se meu corpo tivesse perdido seus limites e formas, tornando-se uma espécie de “bola”. Não havia nem lugar para dor ou incômodo. Quase não havia corpo, somente meus olhos e a parede à minha frente. A mente bem mais silenciosa e menos rebelde, embora agitada, me atormentava bem menos. Fui dormir satisfeito e feliz com aquela experiência. No último dia de Seshin eu já não me levantei para os Kihins. Percebi que eu podia dominar aquela arte de me aquietar e concentrar, havia caminhos para aquilo, mas era uma prática como outras que fazemos na vida com o corpo e mente, e exigia treino, repetição e refinamento.
Na última sessão de Zazen, tive uma experiência muito bonita e marcante. Após os primeiros 40 minutos, com a mente bem mais silenciosa e o corpo firme e imóvel, sentia-me como se o meu corpo fosse uma espécie de eixo, parado, no qual o universo inteiro girava. As pessoas que passavam por mim, realizando o Kihin se assemelham a estrelas girando em torno do universo infinito. Lembrei-me dos dervixes rodopiantes (dança Turca) que entravam em êxtase com seu giro. Lembrei das diversas culturas e tradições espirituais que traziam árvores simbólicas como o “áxis mundi”, o eixo no qual o universo todo gira. As lágrimas rolaram dos meus olhos e me veio a seguinte mensagem interna: “o coração do homem é a árvore universal no qual todo universo gira, o universo inteiro sou eu”.
Voltei para casa compreendendo o ensinamento dos mestres que diz que o corpo e a mente são uma só coisa. Foi engraçado descobrir os diversos textos e palestras do Sensei Genshô onde ele diz a todo momento que devemos nos manter imóvel no Zazen. Eu só não tinha dado a devida atenção, mas ele já tinha dado a chave. Naquele momento anterior, entretanto, eu não sabia abrir!
Texto de Fred san. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.